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Pela metade

Supremo está prestes a liberar o consumo recreativo de Cannabis, mas o cultivo em larga escala para fins medicinais segue no limbo jurídico

Artesanal. O exorbitante preço nas farmácias estimula a produção doméstica do canabidiol, óleo derivado da erva – Imagem: Prefeitura de Volta Redonda/GOVRJ e Beto Figueiroa/Mandato Ivan Moraes
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O Supremo Tribunal Federal deve retomar, na quinta-feira 24, após a conclusão desta reportagem, o julgamento que pode liberar a posse de maconha para consumo recreativo. Por ora, o placar é favorável à descriminalização. Cogita-se autorizar o porte de até 60 gramas da erva e o cultivo de seis mudas fêmeas em ambiente doméstico. Seria um inegável avanço. Um em cada três detentos no Brasil foi acusado por tráfico de drogas, e muitos deles acabaram presos em flagrante com pequenas quantidades de entorpecentes. Segundo recente pesquisa do Ipea, a maioria dos processados são homens (87%), jovens (72%) e negros (67%). Metade deles possuía alguma anotação criminal anterior, e somente em 17% dos casos havia menções sobre o envolvimento com facções criminosas. Com a liberação da maconha, espera-se uma significativa redução do número de presos no Brasil, que no fim de 2022 possuía a terceira maior população carcerária do mundo (832,9 mil), atrás apenas de EUA e China.

Na avaliação de Guilherme Carnelós, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, a Suprema Corte dará uma enorme contribuição à sociedade se apresentar um parâmetro claro para distinguir usuários de traficantes. “Isso não pode continuar sob a análise subjetiva de delegados, até porque existe um racismo institucional muito claro nas corporações policiais.” Se o suspeito é negro e vive num bairro pobre, acrescenta o advogado, é grande a possibilidade de ser considerado traficante, mesmo que tenha sido flagrado com uma pequena quantidade de drogas. No caso de suspeitos brancos abordados em bairros de classe média ou rica, o tratamento é radicalmente distinto, são tratados como usuários. “O determinismo geográfico e racial exerce um papel muito forte.”

Seis mudas de maconha não são suficientes para manter a maioria dos tratamentos

A despeito dos impactos positivos da decisão no sistema carcerário, muitos especialistas se ressentem com a falta de atenção dispensada pelos ministros da Suprema Corte com a Cannabis medicinal. Desde que foi concedido o primeiro habeas corpus para cultivo da erva com a finalidade de produzir medicamentos, em 2016, o debate avançou em passos trôpegos no Brasil. As seis mudas de plantas fêmeas que podem ser liberadas são insuficientes para manter tratamentos prolongados de pacientes que fazem uso do canabidiol e de outras substâncias extraídas da erva.

Ainda assim, o advogado Felipe ­Nechar, coordenador jurídico da Associação Divina Flor e integrante da Comissão de Direito Médico e Sanitário da OAB de Mato Grosso do Sul, acredita que os pacientes têm razões para celebrar. Uma vez reconhecida a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas de 2006, a prever punições a quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com a determinação legal”, a decisão deverá ser modulada para beneficiar quem faz tratamentos com Cannabis. “Da mesma forma, devem surgir novas políticas públicas nas áreas de saúde e segurança pública sem aquela visão dogmática da Guerra às Drogas. O proibicionismo causou mais danos que benefícios.”

Pioneira. Margarete Brito foi a primeira brasileira a obter autorização judicial para cultivar a erva com finalidade medicinal – Imagem: Arquivo Pessoal

Nechar ressalta que a produção de medicamentos ou fitoterápicos está sujeita ao controle da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, responsável por estabelecer os critérios de ­boas práticas no manejo e fabricação. Hoje, a Cannabis é utilizada para tratar numerosas doenças, do câncer à depressão, passando por síndromes raras e casos agudos de epilepsia. O paciente precisa, porém, obter um ­habeas ­corpus na Justiça para produzir o seu próprio medicamento. Caso contrário, ficará refém dos elevados preços cobrados pela indústria farmacêutica no Brasil. Um frasco de canabidiol, óleo extraí­do da planta de maconha, pode custar mais de 2,5 mil reais nas prateleiras das farmácias, a depender da concentração de princípio ativo presente na solução. Muitos recorrem à importação do produto, mas ainda assim os valores são salgados e as remessas podem demorar a chegar, levando a interrupções no tratamento dos pacientes.

Quando o paciente não tem a intenção de produzir o próprio remédio ou não possui estrutura adequada para o cultivo, a alternativa é buscar o amparo de associações autorizadas por decisões judiciais a plantar e extrair derivados da Cannabis. Quem participa dessas organizações explica que elas fazem o que o Estado deveria fazer: acolher e dar soluções para os pacientes com doenças graves. Nechar defende a fabricação artesanal não só pelo baixo ­custo, mas também pelo “efeito relaxante da prática da jardinagem”, que pode até contribuir para o tratamento. “Melhor que maconha no SUS é maconha no quintal, inúmeros pacientes acabam por realizar terapia ocupacional com o manejo de suas plantas”, argumenta.

Mais de 3,5 mil pacientes ganharam habeas corpus para fabricar seus próprios remédios à base de Cannabis

Presidente da Comissão de Direito Canábico da OAB de Pernambuco, Sérgio Eduardo Urt Almeida de Moraes avalia que a decisão do STF não terá impacto sobre a produção em larga escala das associações. Abre, porém, espaço para avançar no debate longe do pânico moral existente hoje na sociedade. “Poder falar abertamente sobre o assunto é o primeiro passo para demonstrar às pessoas que não se trata de uma droga tão nociva como foi apregoado ao longo dos anos. Isso, sem dúvida, já é uma grande vitória.” Mesmo com seis plantas fêmeas liberadas, acrescenta o especialista, ainda será necessário recorrer ao Judiciário, com pedidos de habeas corpus, para cultivar a quantidade necessária de mudas para a maior parte dos tratamentos. Isso porque a Lei 399/15, que versa sobre o plantio, produção e distribuição comercial da Cannabis em larga escala, está parada na Câmara Federal desde 2021, sem previsão de avançar.

“Se, no futuro, a Lei 399/15 for aprovada, não será mais permitido o recurso do habeas corpus, porque a indústria farmacêutica e as associações terão autorização para cultivar a planta em larga escala. A produção individual não será mais possível”, explica Moraes. “Esse movimento mexe com muito dinheiro. Não estamos falando só da indústria farmacêutica, mas também da venda ilegal, do narcotráfico. Os laboratórios estão ansiosos pela regulação.” Outra questão em debate é a obrigatoriedade de os planos de saúde oferecerem tratamentos com Cannabis e seus derivados. “Atualmente, é preciso acionar o Judiciário, que vai decidir caso a caso. Os planos não são, a priori, obrigados a custear os tratamentos, ainda que seja possível importar ou comprar certos produtos na farmácia.”

Na rede pública, o SUS é que deveria garantir o acesso dos pacientes aos medicamentos à base de Cannabis. O tema é debatido atualmente na Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, e 14 estados aprovaram leis que permitem o uso de Cannabis na saúde pública. “A demanda é muito alta. Passou da hora de ser acolhida de forma séria, com políticas públicas”, diz Moraes.

Desde que passou a ser permitida a importação de medicamentos prontos derivados da maconha, a demanda nunca parou de crescer. Em 2015, foram emitidas 481 liberações para compra no exterior. Neste ano, foram 66 mil apenas no primeiro semestre. Para a plantação própria existem mais de 3,5 mil habeas corpus vigentes no País. Além disso, dez associações, em seis estados, estão autorizadas a produzir os remédios.

Voto. Gilmar Mendes defendeu a descriminalização de usuários de todas as drogas – Imagem: Arquivo/STF

A primeira pessoa a obter um ­habeas corpus para a produção individual no Brasil foi a advogada Margarete Brito, que atua na associação Apepi. Ela buscava tratamento para a filha, que nasceu com uma síndrome genética rara, chamada CDKL5, doença que causa convulsões frequentes no início da infância. Ao pesquisar sobre a moléstia, descobriu o caso de uma criança que obteve bons resultados com um tratamento à base de Cannabis nos EUA. Na clandestinidade, Brito arriscou-se a importar o óleo e viu a qualidade de vida­ da filha melhorar da água para o vinho em pouco tempo. Foi então que recorreu à Justiça para obter a liberação de plantar e produzir o medicamento por conta própria. O que era uma pequena horta, num apartamento de 70 metros na capital fluminense, virou uma plantação de larga escala no interior do Rio de Janeiro. Hoje, a advogada produz medicamentos e fitoterápicos para mais de 7,5 mil pacientes.

Brito vê com bons olhos o avanço da pauta no STF, mas ainda é pessimista sobre o impacto da decisão na vida de milhares de pacientes brasileiros que hoje utilizam a Cannabis. “É uma vitória imensa a possibilidade do cultivo de seis plantas em casa. Até porque liberar o porte, e não o cultivo, seria uma forma de empurrar as pessoas para o narcotráfico”, pondera. “Mesmo assim, tenho dúvidas de que vamos avançar mais, pois a força dos proibicionistas é muito grande em Brasília. Basta conferir como transcorreu o debate sobre o assunto no Senado na semana passada.”

Na quinta-feira 17, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, manifestou incômodo com o julgamento da Suprema Corte. Segundo o parlamentar, a decisão de liberar ou proibir o consumo de entorpecentes compete ao Legislativo, e não ao Judiciário. “Em sua declaração, Pacheco demonstra que o proibicionismo ainda é muito forte dentro da Casa. Por lá, há quem queira restringir ainda mais”, observa Brito. “Esse tema virou um cabo de guerra entre os poderes, e quem sai prejudicado são os pacientes.” •

Publicado na edição n° 1274 de CartaCapital, em 30 de agosto de à brasileira.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pela metade’

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