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A redenção da Cannabis

Uma inédita liminar autoriza o uso de maconha in natura para fins medicinais

Tacyani Mota precisaria desembolsar 15 mil reais por ano para se tratar com a flor importada – Imagem: Nelson Almeida/AFP e Acervo pessoal
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Cada vez mais distante da ciência, o Conselho Federal de Medicina parece não ser mais levado a sério por amplos setores da sociedade. Em outubro do ano passado, a entidade causou enorme rebuliço ao publicar uma anacrônica resolução que restringia o uso do canabidiol para tratar casos de epilepsia em crianças e adolescentes, além de manter o veto à prescrição de maconha in natura para fins medicinais. A forte reação de pacientes beneficiados pelos tratamentos à base de Cannabis levou a entidade médica a recuar na decisão e abrir uma consulta pública sobre o tema. Agora, nova liminar judicial dá uma banana para a excessiva cautela do CFM, que, contraditoriamente, lavou as mãos para o uso de medicamentos sabidamente ineficazes contra a Covid-19, no auge da pandemia.

Em março, a 2ª Vara Federal de Sergipe autorizou a Associação Salvar a cultivar e comercializar a maconha para fins medicinais, inclusive a flor e comestíveis à base de Cannabis sativa. Trata-se de uma decisão inédita. Até então, poucas entidades possuíam autorização para fornecer legalmente o canabidiol, óleo derivado da erva, e jamais a planta in natura. Conforme prevê a liminar, a entidade deverá, porém, cumprir seis normas técnicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. Do contrário, a autorização pode ser “revogada a qualquer momento, caso seja constatada qualquer irregularidade”. Segundo especialistas consultados por CartaCapital, o Judiciário brasileiro jamais concedeu uma decisão tão permissiva em relação à maconha medicinal.

De acordo com o advogado Paulo ­Thiessen, autor da petição que resultou na liminar, a Salvar está fazendo todas as adaptações necessárias para cumprir os requisitos legais e iniciar a produção de derivados. A associação terá de adaptar sua estrutura de armazenamento (galpões e dispensários), de segurança (câmeras de vigilância e muros) e de fabricação (maquinário e embalagens). “Os pacientes confiam em nosso trabalho, por isso não podemos dormir. Estamos celebrando, claro, mas também correndo contra o tempo para oferecer terapias alternativas o quanto antes”, afirma o advogado, a ressaltar outros benefícios da conquista: “Hoje, um tratamento barato, com 10 gramas da flor, custa cerca de 500 reais, sem contar as taxas de importação e entrega. Pela Salvar, os pacientes terão acesso ao mesmo material por um custo entre 150 e 200 reais. Além disso, o efeito medicinal das flores e comestíveis tem duração e velocidades diferentes, que atendem a necessidades específicas. E muitos pacientes só conseguiam ter acesso a esses insumos no mercado internacional ou na clandestinidade”.

Tacyani Mota, de 34 anos, é uma delas. A enfermeira faz tratamento com maconha medicinal desde 2020, quando entendeu que os métodos tradicionais eram inócuos para o seu quadro de endometriose, doença ginecológica caracterizada pelo crescimento anormal do tecido endometrial fora do útero. Recentemente, ela deixou de usar as flores de Cannabis durante as crises, devido ao elevado custo de importação. Além disso, nem todos os fornecedores ofereciam informações seguras sobre origem e dosagem. “Tomo os óleos diariamente, mas, para controlar as crises, somente as inalações da flor estancam a dor na hora”, conta Tacyane, que precisaria desembolsar 15 mil reais por ano para manter o tratamento com Cannabis importada.

A enfermeira só conseguiu adquirir estabilidade na vida profissional devido aos óleos da Salvar. “Antes, era comum faltar nas provas da faculdade e perder dias de trabalho. Quando meu chefe me chamou para conversar, saí me sentindo a pior pessoa do mundo, mas determinada a encontrar uma solução”. Tacyane chegou a ser internada com fortes dores 30 vezes ao ano. Tomava morfina para controlar a dor, durante as crises mais agudas. Com o uso terapêutico da maconha, as internações despencaram para duas vezes ao ano.

O Judiciário parece ter percebido que a oposição do CFM é político-ideológica, e não científica

Segundo um estudo de 2021 produzido pela Kaya Minds, empresa especializada no mercado de maconha medicinal, o uso de fármacos à base de Cannabis pode beneficiar cerca de 6 milhões de brasileiros, se fosse regularizado. Na fundamentação da liminar, o juiz federal ­Ronivon de ­Aragão mencionou o quadro clínico de quatro pacientes da Salvar. Entre eles, o jovem João Pedro, em quem o uso da ­Cannabis diminuiu em 90% as convulsões diárias da epilepsia. E o garoto Heitor, que passou a interagir socialmente e deixou de viver 100% no espectro autista, como relatou sua mãe. “A presente demanda tem enraizada em seu ‘DNA’ a busca pela dignidade humana”, reconheceu o magistrado.

O uso medicinal da maconha vem avançando gradualmente. Uma onda de marcos regulatórios e conquistas via Judiciário ocorrem no País desde que a ­Anvisa aprovou o primeiro registro de medicamento à base de Cannabis, em 2017. Na avaliação do advogado Emílio Figueiredo, diretor da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Rede Reforma), sempre há evolução entre uma decisão e outra, furando os limites do bloqueio à pauta. “Por conta do receio da criminalização, vejo uma influência puramente moral de pessoas e autoridades no avanço do uso”, comenta Figueiredo, que ajudou a fundar 40 associações.

Um exemplo desse bloqueio ocorreu às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais: a resolução do CFM mencionada no início da reportagem. Imediatamente, a medida foi alvo de críticas e protestos. A decisão foi vista pela oposição como decisão político-ideológica, e não científica. Restringir a maconha medicinal serviu apenas para insuflar os ânimos de eleitores conservadores, a ignorar os benefícios terapêuticos da erva. Detalhe: o presidente do Conselho, José Hiran da Silva Gallo, apoiou publicamente a reeleição de Bolsonaro.

O cenário é outro com a mudança de governo, avalia Figueiredo. “Ainda existem setores com uma posição tecnocrata, que só reconhecem os produtos que chegam às prateleiras das farmácias. Mas isso não está ancorado na realidade dos pacientes, que vivem em dor e não podem pagar os abusivos preços cobrados pela indústria”, diz. “Com a mudança de governo, já foi restabelecido o diálogo com setores importantes no intervalo de apenas três meses.”

Recentemente, o governo federal enviou representantes para o 3º Congresso Brasileiro do Direito da Cannabis Medicinal, promovido pela OAB. Compareceram integrantes do Ministério da Saúde, autoridades do Judiciário, políticos ligados ao governo, técnicos da Anvisa e de entidades do setor da saúde. O presidente do CFM também esteve presente.

“Já avançamos muito. Cultivar maconha medicinal no Brasil privilegia a mão de obra local, a nossa terra e o nosso povo”, diz Thiessen, antes de celebrar o pioneirismo da Salvar: “Estamos fazendo justiça social com essa decisão”. •

Publicado na edição n° 1255 de CartaCapital, em 19 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A redenção da Cannabis’

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