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Os punhos de renda

Na reta final do governo, embaixadores bolsonaristas cavam saída por cima e cobiçam postos estratégicos em uma eventual volta de Lula ao poder

Rota de fuga. Ramos Filho deseja a disputada embaixada de Buenos Aires, Zaluar Neto mira no Vaticano e Carvalho Neto está de olho em Paris - Imagem: iStockphoto, Pedro França/Ag.Senado, Embaixada do Brasil em Beirute e Embaixada do Brasil em Roma
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A eleição de outubro terá uma cena internacional. Nos próximos dias, Jair Bolsonaro chamará embaixadores estrangeiros que atuam em Brasília para conversar. Está uma fera com a ida ao Tribunal Superior Eleitoral, em 31 de maio, de 70 diplomatas. Estes assistiram a palestras sobre combate a mentiras e milícias digitais, testaram as urnas eletrônicas, ouviram o presidente, Edson Fachin, e o vice da corte, Alexandre de Moraes. Foi um esforço do TSE para mostrar que o sistema eleitoral é confiável. O capitão alardeia o oposto, a semear um golpe à la ­Donald Trump. Nossas urnas, declarou no Palácio do Planalto na segunda-feira 6, “não são adotadas em nenhum país do mundo, a não ser Bangladesh e Butão”.

Dois dias depois, na Associação Comercial do Rio de Janeiro, seguia enfezado. “A política externa é minha e do ministro (Carlos) França, do Itamaraty. Ele (Fachin) convida em torno de 70 embaixadores, e eles vão lá para dentro do TSE, e ele, de forma indireta, ataca a Presidência”. O tribunal queria observadores europeus na eleição. Convidou-os em março. Desconvidou-os em maio. O motivo? Veto da cúpula do Itamaraty. Em 7 de abril, Carlos França e o secretário-geral da Casa, Fernando Simas Magalhães, receberam Fachin e Moraes. Foram duros: nada de observadores. Na semana seguinte, puseram a rigidez em papel timbrado. “O Ministério das Relações Exteriores recorda não ser da tradição do Brasil ser avaliado por organização internacional da qual não faz parte”, dizia a nota.

Para um diplomata brasileiro, se ­Lula vencer, receberá ligações e cumprimentos de chefes de Estado tão logo o TSE anuncie o resultado. Seria uma forma de melar o golpe de ­Bolsonaro. Os gestos partiriam, por exemplo, de ­Alberto ­Fernández ­(Argentina), ­Emmanuel Macron ­(França) e Pedro Sánchez ­(Espanha), mandatários que o ex-presidente visitou em novembro e dezembro de 2021. “O Brasil não é um país qualquer, é uma das maiores democracias do mundo. A nossa eleição será acompanhada com interesse. Vamos ter muitos presidentes na posse do Lula”, diz o petista Jaques Wagner, da Comissão de Relações Exteriores do Senado. “É muito difícil o Bolsonaro reverter a situação nas pesquisas.”

Recentemente, ao menos 70 diplomatas participaram de um evento do TSE sobre a segurança das urnas

Na última delas, a Genial/Quaest, da quarta-feira 8, Lula vencia no primeiro turno. Embaixadores colaboradores do atual governo já cavam uma saída, e por cima. Corre no Itamaraty uma lista com o nome de 13 que escolheram para aonde querem ir nesta reta final de Bolsonaro. A chancelaria disparou, ou está em vias de fazê-lo, telegramas secretos a postos do Brasil lá fora, para que peçam ao governo local o aval ao nome de cada um dos 13. Em caso de anuência, Carlos França poderá enviar as indicações ao Senado, para aprovação.

Segundo diplomatas, esse tipo de rearranjo é normal em fim de governo, anormal é incluir postos estratégicos. Quatro casos se destacam: Achilles Emilio ­Zaluar Neto, chefe de gabinete de França, Hélio Vitor Ramos Filho, embaixador em ­Roma, Paulino Franco de ­Carvalho Neto, secretário de Assuntos Multilaterais do Itamaraty, e Magalhães, o secretário-geral.

Ramos Filho quer Buenos Aires. É a embaixada mais importante, por causa da fronteira e dos laços econômicos com os hermanos. Só Washington rivaliza em peso. O posto portenho é tido quase como da cota pessoal do presidente. O postulante à vaga não tem elo com Lula. Ao contrário. É tido por colegas como antipetista. Foi do governo FHC (esteve no Ministério de Minas e Energia de 1999 a 2001) e assessor especial do deputado Rodrigo Maia na presidência da Câmara, de 2016 a 2019, de onde saiu para Roma. Um diplomata acha um “abuso” indicá-lo para Buenos Aires agora. Outro aposta que, se a nomeação vingar, Ramos Filho será sacado de cara em uma gestão Lula.

Alinhado. Simas subscreveu o veto a observadores e almeja Roma – Imagem: Arthur Max/MRE

Em 2023, haverá campanha na Argentina. Fernández, que pode tentar a reeleição, tem relação pessoal com Lula. Visitou-o na cadeia em Curitiba em julho de 2019, abriu-lhe a Casa Rosada, sede do governo argentino, em dezembro de 2021. Em fevereiro de 2020, anunciou publicamente que o petista encontraria o Papa Francisco por aqueles dias. O sumo pontífice é outro com quem o ex-presidente estabeleceu relação pessoal. Do cárcere, trocou cartas com ele. Por isso, seria apropriado que a embaixada no Vaticano tivesse alguém identificado com o petista. Mas Zaluar Neto, chefe de gabinete do ministro França desde abril de 2021, atravessou o samba. O diplomata, que faz o filtro ideológico das nomeações de baixo e médio escalão no Itamaraty, deseja o posto.

Zaluar Neto ocupou o cargo atual no fim do governo Temer. No início da gestão Bolsonaro, foi escolhido diretor do Departamento de Promoção Tecnológica pelo então chanceler Ernesto Araújo. E designado professor de Política do Instituto Rio Branco, a escola de formação de diplomatas. Sua credencial? Um blog sobre “literatura, religião, filosofia e pensamento político conservador”. Para colegas, ele é de extrema-direita e, curiosamente, antiamericano. Foi ele o redator da nota do Itamaraty contra observadores europeus na eleição. Devido a seu perfil, e à sabotagem do governo ao Sínodo da Amazônia, reunião papal de 2019 com cardeais sul-americanos, seria imprudente mandá-lo ao Vaticano. E prudente ouvir a CNBB, que é próxima do PT.

A relação de Lula com Macron torna inadequado, na visão de diplomatas, o plano do embaixador Carvalho Neto de ser embaixador em Paris. O petista foi recebido no Palácio do Eliseu, sede do governo francês, em novembro. Macron mirava a reeleição e posou para fotos com o brasileiro. Assim que venceu, em abril, Lula deu-lhe parabéns. Seria natural que o petista, se voltar ao poder, tivesse em Paris alguém com quem se identifica, o que não é o caso do secretário de Assuntos Multilaterais do Itamaraty. E o caso do secretário-geral, que cobiça a embaixada em Roma? Contra Magalhães, pesa o fato de que era o representante do Brasil na Organização dos Estados Americanos, quando do golpe contra Evo ­Morales na Bolívia, em 2019, e ter sido a favor.

Para melar o golpe, chefes de Estado devem cumprimentar Lula tão logo o TSE anuncie o resultado

Se o Itamaraty levar adiante as 13 indicações, sem se importar com implicações para um governo Lula, enfrentará um pepino no Senado, a quem cabe aprovar embaixadores. Em maio, o Senado botou para andar uma mudança na Constituição que libera parlamentar para assumir embaixada sem renunciar ao mandato. A proposta é de Davi Alcolumbre, chefe da Comissão de Constituição e Justiça. O Itamaraty é, claro, contra. Por não poder se indispor com senadores, vale-se da Associação de Diplomatas Brasileiros. Comenta-se que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, apoia Alcolumbre. Estaria contrariado com a intenção do governo de pôr na embaixada nos Emirados Árabes um apadrinhado de milicos, Marcos Degaut, secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa. A indicação de Degaut foi enviada ao Senado em abril e está no limbo.

No limbo estão também muitos diplomatas que discordam da política externa bolsonarista. Gabriela Lotta, professora e pesquisadora de Administração Pública e Governo da FGV, entrevistou 40 deles, para um estudo sobre o desmonte do Estado pelo atual governo em algumas áreas. Identificou uma resistência “sutil e silenciosa” entre diplomatas, menos explícita e aberta do que em outras carreiras. A razão é uma peculiaridade do Itamaraty. Há muita subjetividade e pouco critério objetivo nas promoções e nas remoções. Para subir na carreira, é preciso ficar bem com a chefia. Eis por que foram apócrifas duas cartas divulgadas contra o governo. Uma de março de 2019, com 40 apoios, a repudiar a comemoração do golpe de 1964 por Bolsonaro e Ernesto Araújo. Outra de março de 2021, com 300 apoios, a defender a demissão de Araújo. Este de fato caiu naquela época, por várias razões, mas a política externa segue mais ou menos igual.

“Defender nossa soberania exige recuperar a política externa ativa e altiva que nos alçou à condição de protagonista global. O Brasil era um país soberano, respeitado no mundo inteiro”, diz uma prévia do programa de governo de Lula. É o que os diplomatas no limbo querem. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os punhos de renda “

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