Política

O que esperar da política de segurança pública em 2023?

Especialistas do Instituto Sou da Paz, Fogo Cruzado e Universidade Federal Fluminense analisam os planos de governo dos candidatos mais bem colocados nas pesquisas

Chacina no RJ deixa 28 mortos na favela do Jacarezinho. Foto: CARL DE SOUZA / AFP
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Apesar de uma leve e desigual redução no número de mortes violentas intencionais, o Brasil ainda convive com episódios preocupantes de violência extrema. Nos últimos anos, foram simbólicos o massacre na favela do Jacarezinho, a execução em câmara de gás de Sergipe, e os assassinatos do indigenista Bruno e do jornalista Dom Phillips.

Também preocupa a disparada no número de armas em circulação no País. Segundo dados obtidos pelos institutos Igarapé e Sou da Paz, o número de armas registradas no País chegou a 1 milhão. Só na região amazônica, o aumento foi de 700%.

O cenário revela a fragilidade dos arranjos institucionais da segurança pública no país e impõe desafios ao próximo ocupante da cadeira presidencial. 

Para analisar os destaques das propostas dos candidatos e como eles pretendem mudar este cenário, CartaCapital convidou Cecília Olliveira, diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado e ​​especialista em tráfico de armas e drogas; Lenin Pires, antropólogo, professor do Departamento de Segurança Pública e diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense e Carolina Ricardo, advogada, socióloga e diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.

Da esquerda à direita, Cecília Olliveira, Lenin Pires e Carolina Ricardo.

Confira a seguir — para acessar os planos que os especialistas analisaram, basta clicar no nome de cada candidato.

CartaCapital: Há pontos em comum nos planos. Um deles é a implementação do Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP. Qual sua importância para diminuição dos indicadores de violência?

Cecília: O Sistema Único de Segurança Pública foi criado em 2018 com o objetivo de preservar a ordem pública e a integridade das pessoas e do patrimônio, através da atuação conjunta dos órgãos de segurança pública nas esferas Federal, Estadual e Municipal.  

A principal função do SUSP é proporcionar o compartilhamento de informações entre os órgãos de segurança pública. A integração das forças de segurança sob a mesma governança permite uma padronização de dados, integração tecnológica e de inteligência em informações e operações. Isso gera maior eficiência para que o sistema opere de forma mais eficaz na prevenção da violência e no controle qualificado da criminalidade.

Lenin: Um episódio que contaminou o SUSP foi a intervenção federal no Rio de Janeiro. Você tem na prática aquilo que seria um Sistema Único de Segurança Pública para integrar atividades de profissionais civis na prática, por um lado, por conta do que aconteceu no Rio de Janeiro e por outro lado a emergência explícita das Forças Armadas no cenário federal fez com que esta integração seja muito mais pensada dentro dessa coisa ostensiva, do que na questão da inteligência. 

O que fragilizou bastante as fronteiras, permitindo evidentemente o aumento de tráfico de drogas e tráfico de armas, entre outras formas de contrabando. Evidentemente, os decretos do governo Bolsonaro permitiram uma circulação inconstitucional de armas que também contribuíram bastante para isso, porque hoje os contrabandistas têm formas de legitimar suas ações, mas sobretudo na fragilidade das polícias federais. 

A Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal — esta, inclusive, passou a atuar ostensivamente em qualquer lugar do País, não só cuidando das das rotas, mas buscando o maior protagonismo nacional urbano. Então diria que essa coisa da integração foi deturpada pela ênfase da guerra às drogas e à ostensividade. 

CC: Qual a efetividade da tecnologia para prevenção e investigação de crimes? O que merece ser destacado?

Cecília: Não existe bala de prata na segurança pública e muitas vezes a tecnologia é tomada como uma solução mágica. E não é, O uso de tecnologias no combate ao crime organizado é, sem dúvida, uma ferramenta indispensável para construir políticas de fiscalização da fronteira, rastreio e monitoramento de armas e munições, interceptação das rotas do tráfico internacional de drogas que cortam o país, monitoramento do garimpo ilegal na Amazônia comandada por grupos criminosos e para solucionar homicídios.

Mas as ferramentas tecnológicas estão sujeitas ao uso – não raro político – que se faz delas e às escolhas que fazemos enquanto sociedade. Para avaliar o impacto de uma tecnologia com foco em combater a criminalidade, é preciso saber antes quais os objetivos e metas e qual o planejamento por trás do seu uso.

Lenin: ​​Se o uso da força é ostensivo, e muitas vezes abusivos, as tecnologias também vão favorecer isso. No Rio de Janeiro, por exemplo, policiais já começam a organizar a atividade deles de maneira que a bateria das câmeras que eles carregam sejam gastas num contexto onde eles estão aparentemente lidando com o patrulhamento. E, na hora que o sujeito vai lá na favela, acabou a bateria.

LULA (PT)

CC: O candidato fala sobre a implementação de diretrizes nacionais e padronização dos procedimentos operacionais, essa é uma medida viável?

Lenin: Olha, não é descartável esse tipo de medida, mas a cultura institucional corporativa é muito mais forte. São profissionais formados a partir de uma pedagogia muito particular, que apostam em mudar o corpo dos profissionais, na socialização pela extenuação e que colocam a identidade policial num patamar superior ao da população. É muito difícil mudar esse paradigma com “cursinho isolado”. É necessário um programa onde a socialização dos policiais seja feita junto com a população, em cursos de capacitação e extensão. 

Cecília: Ações voltadas para a valorização do trabalho policial, melhoria nas condições de trabalho e de proteção são sem dúvidas essenciais. Mas elas não resolverão o problema que está arraigado no nosso modo de fazer política de segurança. É preciso investir em planejamento, em informação e inteligência, mas também entender a segurança como parte de algo maior, levando em consideração outras políticas públicas, como as educacionais e sociais.

A segurança não pode ser o último bastião dos problemas sociais, depois que tudo falhou, como é a décadas. Sem ações sistêmicas, focadas, baseadas em evidência e não apenas na letalidade, que muitas vezes ajuda a angariar votos, não veremos uma mudança substancial nesse quadro. 

Sindicato dos Policiais Civis de Pernambuco (SINPOL-PE) realizaram manifestação em dezembro de 2021 – Foto: Reprodução/Severino Soares/TV Jornal

Carolina: Na proposta do Lula tem cinco pontos específicos de segurança pública, dois deles de valorização do profissional, então parece que a valorização dos agentes será um princípio orientador de todas as políticas.

É um valor importante, assim como um plano de direitos humanos, mas ele é o começo, não é suficiente. E aí quando a gente olha a outra parte [do plano] me parece que teve um esforço de pensar concretamente, de pensar formação e seleção, padronizar os procedimentos operacionais e abrir diálogo para modernização das carreiras. Mas também é preciso conversar sobre os marcos legais das polícias.

Pelo menos no que foi formalizado, não entrou nada sobre a questão de controle de armas, é muito importante retomar o que está no Estatuto do Desarmamento de manter a proibição do porte de armas.

JAIR BOLSONARO (PL)

CC: Bolsonaro apresenta um aumento da população carcerária e apreensão de drogas como resultado positivo de seu mandato. Quais seriam as consequências de mais quatro anos dessa política?

Cecília: A prisão não resolve tudo. Prendemos muito, mas isso não tem tido impacto em nossos índices criminais. Os crimes contra a pessoa somam 11% [das prisões]. Isso significa que os crimes contra a vida, num País que perde em média 50 mil pessoas assassinadas por ano, não tem sido olhados como deveria.

O Fogo Cruzado mapeia tiroteios e disparos de arma de fogo em 3 regiões metropolitanas. Rio de Janeiro, Recife e Salvador. Em Rio e Salvador, apenas em agosto, mapeamos 3 e 6 chacinas, respectivamente. 

Em Recife, 91 crianças e adolescentes foram baleadas nesses 8 meses de 2022. Se apenas prender indivíduos resultasse em mais segurança, o cenário seria bem diferente, não? Segurança pública se faz com inteligência, planejamento e participação dos cidadãos. 

Carolina: Eu não acredito que esse é o maior problema do plano dele [mas, sim] quando ele gasta um trecho inteiro falando da importância da preservação e potencialização do exercício da legítima defesa que autoriza o uso da força inclusive com arma de fogo. Ele apostou numa lógica de Segurança Pública que não é uma lógica coletiva da política pública, ele apostou no todos contra todos.

Lenin: Sobre o Bolsonaro, eu quero te chamar atenção para um detalhe. Ele diz que a política que ele vai desenvolver em todos os níveis é para os cidadãos que trabalham. Então, para ele o cidadão é o que trabalha e tem família, ou seja, os moradores de rua, os estrangeiros, as pessoas desempregadas. São 40 milhões de pessoas na informalidade, pelo menos 30 milhões passando fome, ou seja, nessa lógica temos 70 milhões de não-cidadãos, segundo Bolsonaro. 

A política dele é toda de reafirmação da repressão, ele já definiu o limite da cidadania e portanto para quem pode ser pensado algum tipo de direito civil. 

CIRO GOMES (PDT)

CC: Diferentemente dos outros planos, há destaque ao programa de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte. Quais os impactos específicos da violência armada contra esse grupo?

Carolina: Há diferentes formas de violência contra às crianças e adolescentes e é muito importante que tenha uma prioridade específica sobre isso como tem no plano do Ciro.

A gente presta atenção na questão da violência armada que tem atingido cada vez mais crianças e adolescentes em contextos vulneráveis de violência à tráfico de drogas, eventualmente os chamados casos das “balas perdidas”.

O programa de proteção a crianças e adolescentes atinge esses casos mais graves e é fundamental que tenham outras políticas que olhem para outros tipos de violência contra às crianças e adolescentes, como a violência doméstica.

Cecília: Em toda a série histórica do Fogo Cruzado, são 1.083 crianças e adolescentes baleados somente nas regiões metropolitanas do Rio, Recife e Salvador somadas. E há ainda o impacto que raramente ganha a devida atenção: operações policiais mal planejadas com muita frequência resultam em escolas fechadas.

Anos atrás, o Nobel de Economia, James Heckman, mostrou que o investimento na primeira infância ―de zero a 5 anos― é uma estratégia primordial para o crescimento econômico: para cada dólar gasto, o retorno financeiro para a sociedade era de seis dólares, com um retorno sobre o investimento de 7 a 10% ao ano. É preciso virar a chave da segurança pública para preservar a infância e planejar nosso futuro. Não existe amanhã sem o hoje. 

A garota Ágatha Felix, de 8 anos, que foi morta por um tiro de fuzil de no Complexo do Alemão. (Foto: Reprodução/Facebook)

SIMONE TEBET (MDB)

CC: Como você avalia as propostas principais do plano de recriar o Ministério da Segurança Pública e atualizar o Código de Execução Penal e o Código de Processo Penal?

Carol: [Em relação a alteração da legislação penal] Essa é uma tentativa de dialogar com essa sensação que as pessoas têm da impunidade – que não vem tanto no caso de homicídios, mas fala muito mais da questão do crime patrimonial. As pessoas estão com medo por causa do Pix, de ter o celular roubado. Essas propostas tentam responder a isso. Seria muito mais efetivo fazer uma discussão de gestão das polícias.

Lenin: O programa da Simone Tebet é interessante, o problema é que os pontos estão ancorados numa visão de mundo. Como se, por exemplo, os setores privados tivessem um compromisso com essas mudanças que são necessárias em todos os âmbitos, mas não há nenhuma menção aos direitos civis. 

Em relação a priorização com os ministérios, depende da orientação. Eu acho legal. Assim como o Rio de Janeiro ficou muito mal das pernas sem uma Secretaria de Segurança Pública. 

Cecília: O essencial quando se fala em órgãos relacionados à segurança pública no Brasil hoje é notarmos que não existe integração dos dados da segurança pública. Dentre as principais mazelas da segurança, está a falta de um sistema unificado de dados da segurança. Isso é fundamental para criação de políticas públicas efetivas. 

O que se vê hoje são registros que apresentam significativa variação de qualidade no preenchimento a depender da Unidade da Federação. Para que sejam elaboradas políticas públicas eficazes, antes de tudo deve ser feita uma análise precisa dos fenômenos. 

Como fazer isso sem que ocorra a melhoria da qualidade e transparência dos dados de segurança pública? Como saber o real significado da expansão da política de armas se até o Exército que é que habilita colecionadores, atiradores e caçadores diz não saber detalhes dessas armas? 

A gente vive um verdadeiro apagão de informações e não tem como dar qualquer passo adiante sem superar esse problema. Para que tenha real dimensão do problema: até hoje não existe integração entre os sistemas do Exército com os de órgãos de segurança pública. Uma das integrações previstas seria a do Sisnar (Sistema Nacional de Rastreamento de Produtos Controlados pelo Exército) com o Sinesp (Sistema Nacional de Informação de Segurança Pública).

O Sinesp é o sistema do Ministério da Justiça e da Segurança Pública que agrega dados de segurança pública e pode ser acessado por policiais estaduais, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal. Atualmente, ele é a principal ferramenta usada no dia a dia de policiais para o rastreamento de armas. No entanto, não agrega dados do Exército, que é o órgão responsável por registrar armas de CACs, militares das Forças Armadas e policiais.

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