Sociedade

Intervenção no Rio de Janeiro coleciona fracassos, aponta relatório

Após seis meses, Observatório da Intervenção mostra resultado da atual estratégia: somente na Baixada fluminense as mortes por ação policial cresceram 48%

Temer lamenta o vandalismo, mas silencia sobre a violenta repressão policial (Yasuyoshi Chiba/AFP)
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Em seis meses de intervenção federal, o Rio de Janeiro contabilizou 2617 homicídios dolosos, 742 mortos, 31 chacinas e 4850 tiroteios. Até agora, 736 moradores e 51 agentes de segurança perderam suas vidas. Os dados foram revelados na manhã desta quinta-feira 16 pelo Observatório da Intervenção, no documento Vozes sobre a intervenção. De acordo com as informações coletadas em depoimentos e monitoramentos, a ação do governo federal coleciona fracassos. 

“Se o cotidiano já era violento, talvez tenha até piorado”, descreve Tarcísio Lima, morador de Manguinhos, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. O depoimento, que faz parte do documento, poderia ser de qualquer morador da Baixada Fluminense, de São Gonçalo ou da Rocinha, áreas que concentram os índices de violência mais crescentes desde fevereiro no Rio de Janeiro.

Essas regiões são as principais localidades de onde dispara o aviso “atenção na região” no aplicativo Onde Tem Tiroteio, que alerta moradores do Rio de Janeiro sobre o perigo nas ruas. De 16 de fevereiro até o início deste mês, os cariocas receberam o alerta 3111 vezes em seus celulares.

Só na Baixada, o número de mortes por ação policial aumentou 48% e o número de mortos em autos de resistência atingiu seu maior número, 233 pessoas.

Segundo o Observatório, as regiões mais conhecidas pela violência e pelo tráfico, são as que mais tem sentido na pele as incursões militares. Fato que atesta o verdadeiro caráter do Rio como uma “vitrine da intervenção”.

Com postura ostensiva, a intervenção vem apostando na velha “guerra às drogas” e nas operações “faraônicas”, métodos que, segundo especialistas em segurança pública e moradores das favelas, são falhos, ineficientes e só agravam o quadro de violências diárias e mostram que o Gabinete não enxerga o morador de favelas como um sujeito com direito à segurança pública.

Segundo o Observatório, o quadro é desalentador: homicídios e chacinas continuam extremamente altos, mortes decorrentes de intervenção policial e tiroteios também cresceram. As disputas entre facções e quadrilhas, incluindo milicianos, fugiram ao controle em diversas áreas.

As páginas do documento relembram a morte de Marcos Vinícius, os tiros disparados de helicópteros na Maré, a a não elucidação do crime contra Marielle Franco e a falta de investigação nas chacinas da Rocinha e da Cidade de Deus. São exemplos pontuais – e graves – de uma situação cotidiana que mostra que a intervenção não enxerga o morador de favelas como um sujeito com direito à segurança pública.

“Na concepção militarista de segurança, a favela é considerada área hostil, onde todos são inimigos”, afirma Filipe dos Anjos, conselheiro do Observatório e secretário-geral da Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro. “A política de extermínio sob a filosofia da guerra é a única opção que o Estado apresenta para os jovens negros e negras, pobres e favelados. Uma ação genocida, racista e fascista”.

O documento também conta com depoimentos de praças das Forças Armadas que preferiram não ter seus nomes identificados. Neles, fica estampado que a intervenção não é vista com bons olhos nem mesmo dentro do Exército.

“Alguns militares também não concordam com a intervenção. Sentem-se ameaçados: nós viramos alvo. É muito desgastante emocionalmente”, afirma um deles. Outro, continua: “A intervenção é ineficaz e mentirosa. Tudo não passa de uma grande perda de tempo, algo para inglês ver. Não se sabe quem ganha, e o quê, insistindo com a intervenção”. O entendimento, nesses relatos, é de que até mesmo dentro do Exército, a ação é vista como uma medida política e não de segurança pública. 

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Mais do mesmo

O despreparo em relação às ações de inteligência e ao planejamento estratégico preocupa o Observatório. Segundo o documento, o Plano Estratégico da Intervenção Federal foi oficialmente divulgado no mês de julho, cinco meses após o decreto que a autorizou. Até esse mês, apenas 11 das 66 metas do Plano Estratégico da Intervenção foram cumpridas.

“As ações já cumpridas focam no patrulhamento ostensivo e no reaparelhamento das polícias, ao passo que medidas voltadas à inteligência e à redução dos crimes contra à vida andam a passo mais lento”, afirma o Observatório.

Samira Bueno, cientista social do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que, mais uma vez, o governo optou por repetir uma fórmula já saturada. Essa atitude se personifica no aumento das incursões militares para prisões e apreensões, mais violência policial, mais mortes de policiais e também mortes causadas por policiais e o prosseguimento da guerra às drogas.

“Ao invés de priorizar o investimento em inteligência e estratégias capazes de enfraquecer a ação do crime organizado e a corrupção estatal, opta-se, novamente, por mais do mesmo”, comenta Samira.

Pablo ressalta a falta de investigações e de operações que procurem entender a dinâmica do tráfico. Ao contrário, as ações militares focaram-se, durante esses seis meses, operações desarticuladas, com milhares de homens, que visavam a apreensão e a prisão de pessoas que são apenas a ponta mais fraca de um complexo esquema do tráfico e das facções.

O mesmo foi observado em relação às milícias. “Por conta da hipótese da morte da Marielle ter sido fruto das ações de milícias, houve uma tentativa de mostrar que algo estava sendo feito. Prenderam mais de cem milicianos em uma festa. Mas não é fazendo essas prisões que você consegue desarticular completamente esses grupos”, comenta Pablo Nunes, pesquisador do Observatório da Intervenção.

Orçamento

No documento, Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, pontua que as operações envolvem milhares de policiais e soldados, têm um custo altíssimo e gera resultados pífios. “Quando for conhecido quanto custou a apreensão de cada arma ao longo dessas operações, os moradores do Rio de janeiro ficarão estupefatos e frustrados”, avisa. 

A falta de transparência não se refere apenas às estatísticas. O orçamento também é uma dúvida que permanece sem respostas. Em março deste ano, o Governo Federal disponibilizou R$1,2 bilhões para a intervenção. Numa manobra que o Observatório chamou de “obscura e irresponsável”, levando em conta a arbitrariedade com que foi feita e a grave crise fiscal e os cortes em programas sociais.

“Há uma caixa preta sobre o financiamento. Eles dizem que todo esse dinheiro vai ser usado de acordo com o Plano Orçamentário, mas eles não divulgam esse Plano”, afirma Pablo.

Até o final de julho, segundo o Observatório, apenas R$103 mil, dessa verba, haviam sido pagos. Além disso, o que mais preocupa os especialistas entrevistados pelo Observatório, é que não há nenhum detalhamento de como esses recursos serão gastos. “Observamos que processos de compras de fuzis, munições, fardas e veículos – o velho e ineficiente modo de investir em segurança pública – estão sendo iniciados, muitos sem licitação”, afirma o documento.

Falta de transparência

O Observatório usou de muitos meios alternativos para compilar todos os dados, isso porque falta transparência na divulgação dos números oficiais do governo. “Uma política de segurança pública deve ser pública em todos os seus aspectos, inclusive em informação”, afirma Pablo Nunes.

“O Gabinete nega informações e não retorna solicitações. É o oposto do que deveria ser uma política pública. Um regime democrático pressupõe controle da sociedade civil”.

Ainda segundo o documento divulgado, apesar dos pedidos, o Gabinete não deu respostas sobre as mais de 600 mortes decorrentes de ação policial ocorridas desde fevereiro. 

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