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O cerco se fecha

A AGU cobra ressarcimento de 20,7 milhões de reais dos financiadores do levante golpista de 8 de janeiro

Fatura. O prejuízo aos cofres públicos ainda está sendo apurado. Cármen Lúcia, do STF, despachou dois inquéritos contra Bolsonaro para a primeira instância - Imagem: Joedson Alves/ABR e Fellipe Sampaio/STF
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O cerco aos golpistas que devastaram Brasília em 8 de janeiro começa a se fechar. Pouco mais de um mês depois do quebra-quebra na Praça dos Três Poderes, a Advocacia-Geral da União, em uma Ação Civil Pública protocolada junto à Justiça Federal do Distrito Federal na segunda-feira 13, pediu a condenação definitiva de 54 pessoas,­ três empresas, um sindicato e uma associação. Na peça, pede-se um ressarcimento aos cofres públicos de 20,7 milhões de reais, em decorrência dos prejuízos causados com os atos terroristas que destruíram instalações do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e da Suprema Corte. Segundo a AGU, os envolvidos custearam os ônibus fretados para transportar os golpistas de seus estados até Brasília e, portanto, foram decisivos para o vandalismo praticado pelos manifestantes.

“A aglomeração de pessoas com fins não pacíficos só foi possível graças ao financiamento e atuação das pessoas listadas no polo passivo, o que culminou nos atos de vandalismo às dependências dos Três Poderes da República. Tais pessoas possuíam plena consciência de que o movimento poderia ocasionar o evento tal como ocorrido, de modo que a responsabilização civil é medida que se impõe, e em regime de solidariedade com quem mais deu causa ao dano ao patrimônio público”, diz um trecho da Ação Civil Pública, destacando que o financiamento golpista pode ser enquadrado no artigo 942 do Código Civil. “A partir desse transporte e aglomeração de manifestantes é que se desenrolou toda a cadeia fática que culminou com a invasão e depredação de prédios públicos federais.”

O montante de 20,7 milhões de reais corresponde a cálculo preliminar do prejuízo, com base em documentos do Executivo, Legislativo e do STF. O valor ainda não é definitivo, pode aumentar, já que o levantamento e a apuração da destruição seguem em curso. Por enquanto, os danos levantados pelo Senado são de 3,5 milhões de reais e, pela Câmara, 3,3 milhões de reais. No STF, o prejuízo é estimado em 5,9 milhões de reais e no Palácio do Planalto, em 7,9 milhões de reais.

Dos financiadores, a maioria é de São Paulo, Paraná e Minas Gerais e entre as pessoas físicas muitos são políticos. Das empresas, uma tem sede no Tocantins, outra em Mato Grosso e a terceira no Paraná, assim como a associação e o sindicato. Foram anexados ao processo panfletos utilizados pelos acusados, convocando os manifestantes para ir a Brasília. “É adequado falar que num regime democrático, como no sistema brasileiro, contrariam os costumes da democracia e a boa-fé a convocação e o financiamento de um movimento ou manifestação com intento de tomada do poder, situação essa que evidencia a ilicitude do evento ocorrido.”

A peça pede a condenação de 54 indivíduos, três empresas, um sindicato e uma associação

Além do artigo 942 do Código Civil, a AGU convoca os artigos 186, 187 e 927 do mesmo código para enquadrar os acusados. O 942 diz que “os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação”. A AGU já havia solicitado o bloqueio de bens dos acusados e de outros suspeitos. Os demais artigos da ação versam sobre a reparação social ou econômica daqueles que, por “ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violarem direitos e causarem dano a outrem” ou “cometem ato ilícito ou excedem os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. A AGU intima o Ministério Público a intervir na acusação. A expectativa é de que a Justiça do DF dê uma resposta rápida à ação, provas não faltam.

A iniciativa da AGU não é, porém, de responsabilização criminal, e sim administrativa. O objetivo é assegurar o ressarcimento à União pelo prejuízo na depredação dos prédios públicos. Os acusados devem responder criminalmente nas investigações que seguem nos sete inquéritos instaurados pelo Supremo Tribunal Federal. Mais de 600 pessoas foram denunciadas pela Procuradoria-Geral da República, dentre elas três deputados federais. Outros dois inquéritos também deveriam ser instaurados no Supremo Tribunal Militar, para apurar a participação de oficiais e praças do Exército nos atos golpistas. “Mas a acusação lá não será de golpe, querem colocar no âmbito de indisciplina”, explica Francisco Teixeira, professor de História Contemporânea da UFRJ e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.

Da parte do Ministério da Justiça está em curso a Operação Lesa-Pátria, que não tem prazo para acabar e promete investigar com rigor todos os envolvidos. Na terça-feira 14, a Polícia Federal, em cumprimento a uma determinação do STF, realizou oito mandados de prisão preventiva e 13 de busca e apreensão contra financiadores e participantes dos atos de 8 de janeiro. A operação aconteceu nos estados de Goiás, Minas Gerais, Paraná, Sergipe e São Paulo. A Polícia Federal atua em pelo menos quatro frentes de investigação. A primeira mira os que incitaram e participaram das manifestações e são responsáveis pelos danos materiais. A segunda apura a omissão da Polícia Militar do Governo do Distrito Federal, que não impediu o vandalismo, enquanto a terceira quer saber quem são os mentores intelectuais dos atos e a última frente está de olho nos financiadores.

Ensaio. Os atos de 7 de setembro de 2022 serviram para preparar a turba para o assalto às sedes dos Três Poderes – Imagem: Isac Nóbrega/PR

Em relação à responsabilidade da PM, o relatório de Ricardo Cappelli, interventor da Segurança Pública do DF, é revelador. Mostra a leniência dos policiais e a inércia do ex-secretário de Segurança Pública e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres, preso por envolvimento nos atos golpistas e que guardava em sua residência um documento que previa a decretação do Estado de Defesa, a minuta do golpe. Cappelli diz que o documento é o ponto de partida para as investigações e que o acampamento que permaneceu instalado por dois meses no QG do Exército em Brasília é uma peça central para compreender não só o 8 de janeiro, mas ações terroristas que antecederam a destruição da Praça dos Três Poderes, como a bomba encontrada próximo ao aeroporto e o incêndio criminoso de um ônibus em Brasília, ambos em dezembro passado. Para Cappelli, o acampamento era uma espécie de incubadora de planos golpistas.

O relatório mostra que, dois dias antes dos atos do dia 8, Torres teria sido avisado sobre a iminente invasão à Praça dos Três Poderes e que, mesmo assim, não montou um planejamento operacional capaz de conter os manifestantes. O documento mostra que apenas 150 homens faziam a segurança do Palácio do Planalto e muitos comandantes e subcomandantes da PM estavam de férias, além de que o então secretário mudou parte do núcleo de Segurança Pública e, na sequência, viajou para os EUA de férias, gerando instabilidade. “Uma parte importante do batalhão estava de férias e uma montagem operacional desse contingente era absolutamente inadequada, com padrões operacionais estranhos ao que a PM costuma praticar. Você soma isso a uma invasão ao Palácio do Planalto sem que houvesse a resistência ou a proteção que usualmente acontece. Trata-se de uma sucessão de fatores que nos leva a refletir sobre o que aconteceu. Não me parece que tenha sido apenas uma coincidência de erros”, disse Cappelli à Folha de S.Paulo. O relatório foi entregue ao STF, à Polícia Federal, ao Ministério Público e ao governo do Distrito Federal, onde foi instalada uma CPI para apurar os atos terroristas de dezembro e do dia 8 de janeiro.

Com os processos na primeira instância, Bolsonaro fica mais vulnerável a medidas cautelares, como a prisão preventiva

Os deputados acusados de participação nos atos e que constam na denúncia da PGR são André Fernandes e Silvia Waiãpi, ambos do PL, e Clarissa Tércio, do PP. Eles serão investigados pelo STF, mas dificilmente sofrerão sanções da Câmara. “Se não forem cassados pelo Parlamento, o que é quase impossível, somente perderão seus mandatos se condenados a mais de 8 anos de prisão pelo STF, o que também parece difícil. Ou seja, vida mansa para eles”, comenta o jurista Lenio Streck. Líder do PT na Câmara Federal, o deputado Zeca Dirceu não vê clima para cassação dos parlamentares golpistas. “Vou defender junto à bancada do PT, da federação, que devemos primeiro aguardar o desenrolar dos inquéritos, das investigações no Judiciário e que, inclusive, são fruto da nossa denúncia.”

Está nas mãos do presidente Lula a minuta de um Projeto de Emenda Constitucional a prever uma espécie de “lei antigolpe” e a criação da Força Nacional, cuja formação será civil e não militar, em substituição da Força de Segurança Nacional. A proposta foi preparada pelo Ministério da Justiça e deve ser encaminhada ao Congresso Nacional ainda neste primeiro semestre. “Não posso falar do teor da proposta, porque o governo ainda não definiu todos os seus detalhes. Mas, da nossa bancada, vai haver um esforço, uma dedicação muito grande, para esclarecer o que é a proposta e articular com os demais partidos. Alguma medida precisa ser feita para que atos terroristas criminosos não prosperem nunca mais na história do País”, destaca Dirceu.

Segundo Francisco Teixeira, a recriação da Guarda Nacional, existente no período do Império, tem mexido com os ânimos das Forças Armadas. “Está causando muita preocupação entre os militares por ser uma força civil, um braço armado do Ministério da Justiça que não dependeria das PMs nem do Exército para a proteção da Presidência da República. Isso é algo que já existe na França, no Chile, na Itália, nos EUA e talvez seja uma experiência bastante interessante no momento”, explica. Outro ponto que está no radar do governo Lula para impedir golpes é a regulação das redes sociais para evitar a disseminação de mensagens golpistas e de ódio na internet.

Livres. André Fernandes, Silvia Waiãpi e Clarissa Tércio dificilmente perdem os mandatos – Imagem: Redes sociais, Michel Jesus/Ag.Câmara e Marcos Corrêa/PR

O grande número de denúncias enviadas ao STF pela PGR sobre os atos golpistas pode sobrecarregar a pauta do Supremo. Cogita-se a criação de uma força-tarefa com a convocação de juízes para tocar os processos. O ministro Alexandre de Moraes, responsável pelos inquéritos, descarta distribuir os processos para outras instâncias do Judiciário, o que evitaria a possível paralisação do julgamento ou contaminação política dos casos por juízes da primeira instância.

Envolto nos inquéritos dos atos golpistas, o STF está remetendo para a Justiça Comum as ações que investigam o ex-presidente Jair Bolsonaro, sem foro privilegiado desde que deixou o cargo no fim de dezembro e se autoexilou na Flórida. Já são dez processos redistribuídos para a Justiça Federal, do Distrito Federal e Territórios. Entre as ações, a ministra Cármen Lúcia enviou cinco casos ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que tratam da utilização da máquina pública nos atos antidemocráticos do dia 7 de setembro de 2021. A ministra também redistribuiu a ação que questiona uma motociata realizada por Bolsonaro em ­Orlando, nos Estados Unidos.

“Bolsonaro tem pela frente uma série de preocupações, porque conta agora com juízes e procuradores de primeiro grau, os mais diversos, e que muitas vezes têm maior rigor, sem o componente político. Pode ter a simpatia de um ou de outro, mas isso não é o mais importante. O importante é a gravidade das questões que serão investigadas e processadas, algo muito significativo”, avalia o jurista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. “Parece que os últimos tempos serviram para ideologizar a Justiça. Esperamos que as placas tectônicas se acomodem e tenhamos serenidade. Isto é, um Ministério Público que atue por princípios, não por atos estratégicos, além de juízes que julguem com base na lei, não por convicção pessoal”, completa Streck. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1247 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O cerco se fecha “

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