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Negócio da China

À frente de uma volumosa comitiva, Lula tenta refazer os termos da parceria econômica com Pequim

Desproporção. Enquanto Lula tenta colocar o Brasil nos trilhos, Jinping acelera a locomotiva chinesa – Imagem: Alexey Maischev/Sputnik/AFP e Evaristo Sá/AFP
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O Banco Central acaba de manter intacto o maior juro do mundo. Pior para a anêmica economia nacional. O plano de controle de gastos em gestação no Ministério da Fazenda ainda carece de mais apoio político, inclusive no governo e no PT. Os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, não se entendem sobre como devem ser as votações de medidas provisórias e o pato pode cair na conta do Palácio do Planalto.

Antes de descascar esses abacaxis, Lula terá, porém, certo alívio ao se afastar do Brasil por uma semana. Alívio oriental, salpicado por um tema bélico, a guerra na Ucrânia.

A passagem do presidente pela China entre 26 e 30 de março conclui a primeira etapa de reconstrução de pontes com os principais parceiros diplomáticos e econômicos, após as dinamites lançadas a torto e a direito por Jair Bolsonaro. Em janeiro, o petista visitou a vizinha Argentina, passou pelo Uruguai e aproveitou para recolocar o País na ­Celac, a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos. No mês seguinte, foi aos Estados Unidos de Joe Biden, de quem Bolsonaro não gostava (preferia – e prefere – a subserviência a Donald Trump). Agora, vai passar uns dias naquele que, no fim de seus governos anteriores, tornou-se o maior parceiro comercial brasileiro e, hoje, acumula forças para rivalizar com os EUA no posto de potência hegemônica. No ano passado, o PIB chinês foi de 18 trilhões de dólares, o segundo maior, e o norte-americano, de 25 trilhões (o do Brasil foi de 1,9 trilhão, 12º). Há quem projete que o gigante do Leste tomará a liderança entre o fim da década atual e o começo da próxima.

Líder da marcha rumo à hegemonia, o presidente chinês, Xi Jinping, não por acaso foi reeleito em março para um inédito terceiro mandato de cinco anos. Será o político com mais tempo no poder desde Mao Tsé-tung, comandante da revolução comunista de 1949. O mesmo Congresso Nacional do Povo que o reelegeu, por unanimidade, nomeou o primeiro-ministro, Li Qiang, e o presidente da Assembleia Nacional, Zhao Leji. Lula terá encontros com cada um dos três em Pequim, a capital chinesa, na terça-feira 28, dia que terminará com um banquete oferecido por ­Jinping. Este acaba de voltar da Rússia, onde esteve com Vladimir Putin e discutiu a guerra na Ucrânia (reportagem à página 42). O conflito será um dos temas da visita. O Brasil defende um cessar-fogo e esforços pela paz e até se ofereceu para mediar as negociações. Pequim colocou na praça o esboço de um acordo. Putin gostou. Biden, não.

Na pauta, guerra na Ucrânia, investimentos em infraestrutura e combate à fome

Os chineses sentem-se mais à vontade no tabuleiro da geopolítica. No início de março, Irã e Arábia Saudita anunciaram a intenção de reatar as relações diplomáticas e reabrir as respectivas embaixadas, acordo possível por obra da mediação de Pequim. As duas nações disputam influência no Oriente Médio e os corações islâmicos (os iranianos são xiitas, em sua maioria, enquanto os sauditas são sunitas). Haviam rompido em 2016, após o assassinato de um clérigo xiita, Nimr al-Nimr, na Arábia Saudita. Em 2021, a China selou com o Irã um acordo de 25 anos e 400 bilhões de dólares. Um desafogo para os iranianos, alvos de sanções internacionais em razão da repressão movida pelo fundamentalismo religioso. Em fevereiro, dois navios iranianos atracaram no Rio de Janeiro, para ficar em torno de uma semana. A Marinha brasileira permitiu. Os EUA pressionaram o governo para não aceitar os navios. Em vão.

De volta à viagem. Na quarta-feira 29, Lula participará, ainda em Pequim, de um seminário empresarial Brasil-China. Haverá recorde de participantes, segundo o embaixador responsável pela área Ásia-Pacífico no Itamaraty, Eduardo Saboia. Curiosidade: Saboia teve papel central na queda de um chanceler no governo Dilma Rousseff, Antonio Patriota, em razão do apoio à fuga de um senador da Bolívia para o Brasil. A delegação brasileira na China tem cerca de cem empresários, além de 40 parlamentares, entre eles Rodrigo Pacheco. No total, serão 240 viajantes, incluí­dos ministros e assessores. Os empresários, diz um embaixador, têm curiosidade para saber o que é exatamente a China, como funcionam os negócios e a burocracia estatal, e muitos procuraram o governo para integrar a comitiva.

Os empresários pagariam a viagem do bolso e decolariam dias antes do presidente, em companhia do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro. O agronegócio é o responsável por ter convertido a China em nosso maior comprador, a partir de 2009. O comércio bilateral, soma das exportações nos dois sentidos, quase quadruplicou de lá para cá. Subiu de 38 bilhões de dólares para 150 bilhões no ano passado. Só as importações chinesas de produtos brasileiros totalizaram 89 bilhões, mais do que a soma daquelas feitas pelos EUA (37 bilhões) e a União Europeia (50 bilhões). Entre a turma do agro na delegação montada por ­Fávaro, há bolsonaristas juramentados, caso de ­Hugo ­Leonardo ­Bongiorno, diretor da ­Avenorte, doador de 25 mil ­reais para a fracassada campanha reeleitoral do capitão.

A ex-presidenta Dilma Rousseff também integra a delegação. Espera-se sua nomeação para dirigir o banco dos BRICS, instituição financeira cujos demais acionistas são África do Sul, China, Índia e Rússia. O banco tem comando rotativo entre os integrantes do “bloco” e, até 2025, o posto pertence ao Brasil. O diplomata neoliberal Marcos Troyjo, colocado na instituição em 2020 pelo então ministro da Economia, Paulo Guedes, foi convidado a sair de cena. O banco fica em Xangai, maior cidade chinesa e centro financeiro, e será visitado por Lula no dia 30. Foi no governo Dilma, em um encontro dos BRICS no Brasil, em 2014, que a instituição foi criada, com o objetivo de financiar obras de infraestrutura em países emergentes. É uma alternativa ao Banco Mundial, que segue as diretrizes de norte-americanos e europeus. Com o orçamento brasileiro no aperto, pode ser um meio de tirar do papel obras por aqui.

Costuras. A sexta geração do satélite sino-brasileiro está a caminho. Dilma espera a nomeação para o banco dos BRICS – Imagem: Roberto Stuckert Filho/PR e INPE/CBERS

O Brasil é o principal destino de investimentos chineses na América Latina. O gigante asiático tem dinheiro de sobra há tempos e busca oportunidades pelo globo, sobretudo em infraestrutura. O estoque de capital chinês aqui é de cerca de 70 bilhões de dólares, conforme informação do Ministério das Relações Exteriores. Foi acumulado nos últimos dez, 15 anos, em que se destacam aportes em geração de energia eólica e solar, especialmente no Nordeste. A propósito, em abril, o governo promoverá leilões de geração de energia renovável no Nordeste. Também assinará contratos para linhas de transmissão.

Não só em obras os chineses avançam no Brasil. A loja Shein, que vende roupas e calçados pela internet, domina cerca de 25% do mercado brasileiro, segundo relatório do Itaú. Suas vendas atingiram cerca de 8 bilhões de reais. Comparação: a Renner, do ramo de loja de departamentos, faturou 13 bilhões. E as instalações da Ford na Bahia, fechadas em 2021, serão reabertas pelos chineses da BYD, fabricante de carros elétricos? É provável. Há negociações em curso. Não está descartada a possibilidade de um acordo ser anunciado na passagem de Lula pela China.

Outras parcerias devem vingar durante a visita. Uma delas: a produção de uma nova geração, a sexta, do satélite sino-brasileiro Cbers, capaz de monitorar florestas mesmo com nuvens. Da declaração final negociada para ser divulgada após o encontro entre Lula e Jinping deve constar ainda um compromisso comum de combate à fome. A FAO, órgão da ONU que trata do tema, é dirigida por um chinês, Qu Dongyu. Seu antecessor foi um brasileiro, José Graziano da Silva. Também se espera que a declaração contenha compromissos sobre mudanças climáticas (a China é o segundo maior poluidor do mundo, atrás dos EUA) e a importância de vacinas e ciência. A pandemia expandiu-se de uma cidade chinesa, Wuhan, para o resto do mundo e o Coronavírus era chamado de “vírus chinês” por Bolsonaro e Trump. Lula será o primeiro líder a visitar Jinping após a crise sanitária global.

Celso Amorim, assessor especial de Lula: “O mundo está mais complexo, defender o multilateralismo ficou mais difícil”

Negocia-se, por fim, alguma referência, na declaração, à reforma do Conselho de Segurança da ONU. Nos governos anteriores de Lula, o Brasil passou a defender uma mudança que permitisse a entrada do País no seleto grupo, formado por EUA, China, Rússia, França e Reino Unido. O privilégio do quinteto é ter direito de veto às decisões das Nações Unidas. Os chineses nunca foram apoiadores enfáticos da entrada do Brasil. A Rússia passou a verbalizar claramente seu apoio nos últimos tempos.

Nossa relação com Pequim tem uma dimensão multipolar pelo peso dos dois países, diz o embaixador Celso ­Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores de Lula e atualmente assessor especial do presidente. “Hoje, o mundo está mais complexo, defender o multilateralismo está mais difícil, o que não nos faz desistir dele. Temos de abandonar o clima de Guerra Fria.” O clima de “Guerra Fria” marca, aliás, as relações entre Washington e Pequim. Em fevereiro, os norte-americanos derrubaram um balão chinês que sobrevoava os EUA, por suspeita de espionagem. Os chineses alegaram que o balão estava a serviço da meteorologia e cobraram reparação para o que consideraram uso exagerado da força. O incidente levou o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, a adiar uma viagem ao país. Ao encontrar dias depois seu homólogo chinês na tradicional Conferência de Segurança de Munique, comentou que os Estados Unidos não buscam “uma nova Guerra Fria”. Na mesma conferência, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, encontrou seu homólogo ucraniano, Dmytro Kuleba, e conversou sobre a posição brasileira favorável à condenação da invasão russa e a um cessar-fogo imediato. Uma semana depois, o Brasil votou exatamente assim na ONU. A China absteve-se, mesma posição dos demais integrantes dos BRICS. A Rússia, claro, foi contra. O mundo está, de fato, bem complexo. •

Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Negócio da China’

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