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A vitória da diplomacia chinesa na reconciliação entre Arábia Saudita e Irã

O acordo veio após longas negociações mediadas de forma descrita e eficiente pela China realizadas em Pequim

Foto: Nournews Agency/AFP
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Irã e Arábia Saudita, os dois grandes rivais produtores de petróleo do Oriente Médio e aspirantes ao lugar de hegemon na região concordaram em restabelecer relações e reabrir embaixadas sete anos após o rompimento das mesmas.

O acordo veio após longas negociações mediadas de forma descrita e eficiente pela China realizadas em Pequim. “Como resultado das negociações, o Irã e a Arábia Saudita concordaram em retomar as relações diplomáticas e reabrir as embaixadas … dentro de dois meses”, informou a agência de notícias estatal iraniana Irna, citando um comunicado conjunto.

Se por um lado este acordo traz uma brisa de esperança para a pacificação na região e evita o perigo de uma balcanização com consequências nefastas, o acordo agora assinado no Oriente, nas terras de Mao Tsé-Tung, sob a tutela da China, a nova hiper puissance, revela uma viragem na geopolítica mundial e indica doravante que estamos numa nova ordem mundial que tem como polo o Oriente e não o Ocidente.

Eis a simbologia do acordo entre as duas potências antagônicas do Oriente Médio.

Recorde se que Riad cortou relações com Teerã depois que manifestantes iranianos atacaram missões diplomáticas sauditas no Irã em 2016, ato que surgiu após a execução saudita do reverenciado clérigo xiita Nimr al-Nimr.

Todavia a rivalidade entre o Irã predominantemente xiita e a Arábia Saudita sunita que dominou a política do Oriente Médio nos últimos anos, espalhando-se em proxy wars sangrentas pela Síria, Iraque, Líbano e Iêmen, tem suas raízes no passado longínquo do mundo árabe, logo após a morte do profeta Muhammad em 632.

O vácuo do poder deixado pelo profeta abriu caminho as rivalidades profundas de uma sociedade árabe geneticamente clânica. O cisma que abalou de forma dramática al-Umma (comunidades dos crentes muçulmanos) depois a morte do profeta, e que se agravou com o assassinato – dentro uma mesquita – do califa ali, genro e primo de profeta Muhammad, em 661 e mais tarde de seu filho al-Hussein, em 680, deixou marcas no inconsciente coletivo dos muçulmanos. Esses acontecimentos trágicos originaram um dos primeiros movimentos protonacionalistas no Oriente médio chamado al-Chu‘ubiyya que era contestador  da  primazia dos árabes e defendia os outros povos nomeadamente os persas.

Séculos depois, esses elementos foram instrumentalizados pelo terrível colonialismo britânico na região que surge logo após o fim do califado e império turco-otomano em 1922. Com o fim da segunda guerra mundial e a ascensão da nova potência “imperial” dos Estados Unidos da América que substitui os britânicos, a região do Oriente Médio, entrou num novo ciclo de subjugação, cobiça e guerras sem fim. A fundação do Estado de Israel em 1948 e as guerras subsequentes agudizaram a instabilidade política.

O Golfo Pérsico, se viu perante uma nova arquitetura, a do Estado nacional e seus desafios.  Recém-criados, os Estados da região, tiveram de construir suas alianças com a nova potência mundial e colonial, que é os Estados Unidos. O pragmatismo das famílias reais do Golfo Pérsico, levou os a arrendar suas riquezas petrolíferas em troca da protecção americana.

O nacionalismo contestatário vai subsistir na região contra a hegemonia americana, com duas experiências: Uma árabe, a de Jamal Abdel Nasser que vai sofrer um sério revés na guerra de seis dias (1967) e outra persa, de cariz étnico religioso e que vai conseguir chegar ao poder em 1979 e que se mantém até nossos dias.

A instauração pelo clérigo Ruhollah Khomeini da República Islâmica de Irã mostrou que o domínio estadunidense na região era doravante questionado e contestado. Seguiram depois uma serie de acontecimentos dramáticos. A crise dos reféns americanos na embaixada pelos adeptos do Imã Khomeini em 1979, a guerra do Iraque de Saddam Hussein, incentivado pelos Estados Unidos e os países árabes, apenas abriram as feridas do velho e eterno cisma entre os Xiitas e Sunitas dentro da Umma Islâmica.

Eis então as forças profundas do antagonismo da Arábia Saudita e Irã. Nesse sentido a reconciliação conseguida pelos chineses é de uma dimensão geopolítica sem precedente uma vez que mostrou a capacidade e o génio da China no âmbito diplomático e numa região que sempre foi uma espécie de feudo dos Estados Unidos.

A leitura que se deve ser feita é que o acordo tem implicações potencialmente amplas tanto para o acordo nuclear com o Irã assim como na guerra civil do Iêmen, onde os dois lados estão envolvidos em uma guerra por procuração. Por outro lado, esse acordo feito conseguido sob a chancela da China mostra a nova determinação da Arábia Saudita e nomeadamente do príncipe herdeiro Mohammed Bin Salman, o enfant terrible de conduzir uma política externa independente do Ocidente e principalmente de Washington.

A agência de imprensa Saudita confirmou o acordo, segundo o qual os dois países concordaram em respeitar a soberania de cada Estado e não interferir nos assuntos internos um do outro. Também disse que Riad e Teerã concordaram em ativar um acordo de cooperação em segurança assinado em 2001.

Pragmaticamente falando, este détente vai permitir aos dois rivais de capitalizar esforços em vez de perenizar os desgastes financeiros e militares. Ambos os países querem seguir os caminhos do modelo chinês que sempre procurou o progresso e distanciar dos conflitos ao contrário de Washington, herdeira da tradição imperial britânica que sempre preferiu dividir para reinar.

Em termos da aproximação da Arábia Saudita com a China, no início desta semana, o ministro das Relações Exteriores saudita, príncipe Faisal bin Farhan al-Saud, defendeu os vínculos da Arábia Saudita com a China, dizendo: “A China é nosso maior parceiro comercial. É também o maior parceiro comercial da maioria dos países. E essa é uma realidade com a qual teremos de lidar. A China, para nós, é um parceiro importante e valioso em muitas áreas. Temos excelentes relações de trabalho em muitos setores. Mas nós dissemos e repetimos isso, sempre, vamos olhar para os nossos próprios interesses. E vamos procurá-los no Oeste e no Leste”. Portanto esta claro que se trate de uma nova abordagem da política externa da Arábia Saudita que tem procurado se libertar do controle obsessivo dos Estados Unidos sobre Riad.

Todavia se nós analisamos as implicações do acordo de paz para Arábia Saudita, verificamos que uma reconciliação com Irã vai permitir que haja uma solução na guerra do Iêmen onde há uma guerra civil fratricida entre os houthis apoiados pelo Irã baseados no Norte e os do Sul que são apoiados por Riad.

A Arábia Saudita espera que o Irã interrompa os ataques de drones e mísseis Houthi no reino, e que o Irã ajude nas negociações sauditas com os Houthis

Já em relação ao Irã, o acordo de paz feito sob chancela chinesa vai permitir ao Irã de fracassar os objetivos de Washington em isolar o Irã que passa a ter instrumentos de burlar o embargo económico americano e se empoderar como potência regional desta vez sentindo fortalecida pela nova superpotência do mundo que é também adversária do hegemon americano.

Há que reconhecer que o regime iraniano tem mostrado uma resiliência rara ao manusear as oportunidades que lhe permitem ganhar a confiança dos vizinhos árabes e sobretudo tirar partido das rivalidades internacionais nomeadamente da China, Rússia e o Ocidente. Nesse sentido a adesão do Irã Organização de Cooperação de Xangai (SCO, na sigla em inglês), uma entidade regional voltada para assuntos de economia, política e segurança encabeçada por Rússia e China em 2021 é um êxito político, económico importante já que permite criar um mecanismo que conseguisse burlar as sanções impostas pelo ocidente. Em termos militares o Irã tem feito periodicamente exercícios navais no Oceano Índico ao lado da China e Rússia. Temos aqui uma convergência estratégica pela primeira vez de um conjunto de países em áreas geográficas tidas como zonas de influência de Estados Unidos durante décadas.

Entende assim o porque da preocupação de Israel causará que buscam o isolamento global para seu arquiinimigo, o Irã. Naftali Bennett, o ex-primeiro-ministro israelense, descreveu o pacto como um desenvolvimento “sério e perigoso” e um “golpe fatal no esforço de criar uma aliança regional” contra a República Islâmica.

A natureza que detesta o vazio

Blaise Pascal (1623 – 1662), um matemático e filósofo francês, dizia no século XVII, que a natureza detesta o vácuo.

Há um vazio estratégico na região que começou desde Donald Trump e os chineses parecem ter descoberto como capitalizar isso. A China quer estabilidade na região, já que 40 por cento de suas importações de petróleo vem do Golfo.

Assim Pequim adotou uma abordagem inteligente usando sua diplomacia de parceria estratégica, construindo capital diplomático em ambos os lados do Golfo Pérsico ao contrário dos Estados Unidos, que equilibra um lado contra o outro e, portanto, é limitada em sua capacidade diplomática.

Portanto o acordo ocorre quando a China tenta desempenhar um papel mais ativo na governança global, divulgando um plano de solução política para a guerra na Ucrânia e atualizando o que chama de Iniciativa de Segurança Global, uma tentativa de suplantar o papel dominante de Washington na resolução dos conflitos mundiais.

Portanto a China esta dessa maneira não só a cooptar potências regionais para seu eixo, mas também a fortalecer a libertação desses países da tutela americana. Trata-se de um novo paradigma diplomático chinês que é de infiltrar se nos espaços que sempre foram considerados por Estados Unidos como pilares de seu interesse e segurança nacionais.

Entre o despertar da China e o declínio da América

Há quase 200 anos, em 1816, Napoleão Bonaparte afirmou que a China não estava condenada à decadência. “Quando a China acordar, o mundo tremerá”, disse.

Muitos anos depois, em 1973, o escritor francês Alain Peyrefitte que recuperou a frase de Napoleão para título de um livro célebre, onde profetizava que os chineses, por serem tantos, acabariam inevitavelmente por dominar o mundo. Ora, o Império do Meio é preste a ser a maior economia do mundo.  O casamento do comunismo com o capitalismo tornou-a poderosa.

E América? Será que podemos falar de um declínio? São vários autores que debruçaram sobre o fenómeno da queda dos impérios. Paul Kennedy, Edward Gibbon e no caso dos Estados Unidos temos o Fukuyama que mais destrinçou a realidade política e societária no EUA. Para ele a chegada de Trump ao poder e tentativa de golpe de Estado com a invasão ao capitólio, tudo isso tem ajudado na percepção do declínio americano. Se alguns anos atrás, a maioria dos americanos acreditava que os EUA eram uma das maiores nações do mundo, narrativa baseada no orgulho pela Declaração de Independência e numa Constituição das mais inclusivas”. “Essa narrativa americana que nos manteve unidos, não se sustenta mais”, disse Fukuyama.

Os sinais da decadência americana são muito óbvios – desde o aumento das taxas de criminalidade em muitas grandes cidades até o declínio nos resultados dos testes educacionais. Os salários reais não estão mais acompanhando ou superando a taxa de inflação – causada por gastos indisciplinados. Há também uma espécie de retrocesso cultural, que se evidencia no colapso da fé na razão e na ciência. Durante Donald Trump, cientistas foram demitidos apenas porque defendiam as mudanças climáticas. Trump negou a ciência e se retirou do tratado de Paris, e tentou um golpe de Estado em direto e perante o mundo inteiro.

A derrota diplomática americana é simbolicamente tripla, porque esta perdendo poder nas suas tradicionais zonas de influência no Oriente Médio como no caso da Arábia Saudita; esta fracassando em isolar o Irã e por último esta assistindo paralisada à entrada triunfal da China no Oriente Médio.

Esta vitória diplomática dos chineses é uma espécie de revanche. Tanto vai credibilizar a China como vai dar-lhe legitimidade de se tornar além de um player econômico global que já é, mas também um ator diplomático a escala planetária que fomenta a paz e a concórdia no sistema internacional. Por outro lado, vai diminuir do carisma dos Estados Unidos no mundo.

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