Política

cadastre-se e leia

Mais pra lá…

Bolsonaro pressente a perda dos direitos políticos. Como fica o bolsonarismo?

Imagem: Mauro Pimentel/AFP
Apoie Siga-nos no

Na quarta-feira 14, o Partido Liberal filiou em Brasília Marcelo ­Queiroga, um dos ex-ministros da Saúde de Jair Bolsonaro. O médico deseja concorrer no próximo ano à prefeitura de João Pessoa, sua cidade natal. O ingresso no PL foi prestigiado pelo antigo chefe. Algumas palavras ditas no evento por Bolsonaro deram motivo para o médico encomendar, digamos, o atestado de óbito político do capitão. “A vida de candidato ao Executivo não é fácil”, afirmou o ex-presidente, ao mencionar os mais de 500 processos, não apenas como candidato, mas como gestor, ou seja, por atos dos tempos de Palácio do Planalto. Em seguida, resumiu a própria situação: “Mais pra lá do que pra cá”.

É o Tribunal Superior Eleitoral o responsável por Bolsonaro estar “mais pra lá do que pra cá”. No próximo dia 22, o TSE começará a julgar uma ação que, em razão do conteúdo e da geopolítica interna da corte, tem tudo para terminar com a proibição de o ex-presidente candidatar-se por oito anos, punição que o deixaria fora da próxima eleição presidencial, em 2026. Eventualmente até da ­disputa de 2030, a depender do calendário eleitoral. Espera-se um julgamento longo, não é certa a conclusão antes de julho, mês de férias do Judiciário. Dos sete juízes, dois são vistos como simpáticos ao ex-presidente e podem adiar a decisão com um pedido de vistas, aquele que um magistrado invoca para estudar um assunto com calma. O desfecho não passará, no entanto, deste ano, conforme se ouve nos bastidores do tribunal, inclusive porque seu presidente, Alexandre de Moraes, tomou providências em fevereiro contra as protelações em julgamentos. Os pedidos de vista agora têm prazo máximo de 60 dias (a contagem é interrompida durante as férias do tribunal).

‘É um festival de inelegibilidades nesta ação’, resume o ex-juiz eleitoral Márlon Reis

A condenação de Bolsonaro significaria a morte política do próprio e da extrema-direita nacional? O capitão tem 68 anos, estaria com 76 quando acabasse a punição, mesma idade de Lula na campanha de 2022. Segundo o deputado Arthur Lira, presidente da Câmara e do “parlamentarismo à brasileira”, Bolsonaro se sairá melhor como cabo eleitoral do que como candidato, avaliação com a qual alguns analistas políticos concordam. Dúvida: quem herdaria o espólio e concorreria a presidente pelo bolsonarismo na eleição presidencial de 2026? Na corrida pelo posto despontam os governadores Tarcísio de Freitas, de São Paulo, Romeu Zema, de Minas ­Gerais, e Ratinho Jr., do Paraná, além de Michelle Bolsonaro, a ex-primeira-dama que, contudo, não demonstra vontade em ser candidata.

O apetite excessivo do marido pela reeleição explica o “mais para lá do que pra cá”. O iminente julgamento no TSE decorre de uma ação movida pelo PDT em agosto do ano passado, já com a campanha em curso. Os autores acusam Bolsonaro de ter cometido abuso de poder político, uso da máquina pública em proveito próprio e uso indevido dos meios de comunicação. São acusações baseadas em duas legislações: a Lei Complementar 64, de 1990, que define certas condutas puníveis por parte de candidatos, e a Lei 9.504, de 1997, que estabelece regras gerais para as eleições.

Moraes, inimigo número 1 do bolsonarismo, comanda o julgamento – Imagem: Alejandro Zambrana/TSE

O ponto de partida da ação foi uma reunião de Bolsonaro com cerca de 60 embaixadores estrangeiros em 18 de julho de 2022, no Palácio da Alvorada. O então presidente estava uma fera com um encontro similar que o TSE havia promovido 45 dias antes para comprovar aos olhos do mundo a segurança das urnas eletrônicas. O tribunal queria, aliás, ter contado com observadores europeus durante a eleição, mas foi forçado a retirar o convite por pressão do Ministério das Relações Exteriores. Diante dos diplomatas estrangeiros, o objetivo de Bolsonaro era oposto àquele da corte: “provar” que as urnas e o sistema de contagem de votos do TSE não eram confiáveis.

No discurso de 45 minutos, o então presidente descreveu um inquérito da Polícia Federal sobre um ataque hacker ao sistema do TSE na eleição de 2018. O ataque seria a prova cabal da fragilidade e motivo para o pleito municipal de 2020 ter sido suspenso, o que não aconteceu. Bolsonaro aproveitou ainda para criticar os três juízes do Supremo Tribunal Federal que à época compunham o TSE. Edson Fachin (“o responsável por tornar Lula elegível”, “sempre foi advogado do MST”), Luis Roberto Barroso (“foi escolhido pelo governo do PT”) e Moraes (“advogou no passado a grupos que, se eu fosse advogado, não advogaria”). Só este último ainda integra o TSE, corte composta por três magistrados do STF, em sistema de rodízio, dois do Superior Tribunal de Justiça e dois advogados (estes acabam de ser indicados por Lula: Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares).

A minuta do golpe encontrada no celular de Anderson Torres foi incorporada à ação do TSE. Costa Neto sai em defesa do ex-presidente e correligionário – Imagem: Valter Campanato/ABR e Marcelo Camargo/ABR

O encontro com os embaixadores foi transmitido pela TV Brasil, controlada pelo governo, e as imagens geradas pela emissora foram posteriormente replicadas nas redes sociais de Bolsonaro. Ao mover a ação, o PDT pedia uma liminar para a gravação ser retirada de circulação na web, e o então corregedor-geral do TSE, Mauro Campbell, concordou, decisão referendada pelo plenário do tribunal na semana seguinte. O Youtube havia excluído o vídeo por conta própria com base em uma política interna que “proíbe conteúdo com informações falsas sobre fraude generalizada, erros ou problemas técnicos que supostamente tenham alterado o resultado de eleições anteriores, após os resultados já terem sido oficialmente confirmados”.

Em suma, a acusação pedetista sustenta que Bolsonaro valeu-se do cargo de presidente para convocar embaixadores e fazer um discurso de teor eleitoral, e isso é abuso de poder político (artigo 22 da Lei Complementar 64). A reunião foi organizada com o apoio de órgãos do governo e teve transmissão da TV Brasil, o que configuraria uso da máquina pública (artigo 73 da Lei 9.504). O teor do discurso era falso, tinha fins eleitorais e foi disseminado nas redes sociais, situação que o TSE havia definido no fim de 2021 como passível de condenação e cassação de um candidato, ao punir um deputado estadual eleito em 2018 no Paraná, Fernando Francischini. “É um festival de inelegibilidades nesta ação contra o Bolsonaro”, diz o ex-juiz eleitoral Márlon Reis, “pai” da Lei da Ficha Limpa.

O corregedor-geral do TSE e relator do caso, Benedito Gonçalves, é a favor da condenação de Bolsonaro, apurou CartaCapital

A Ficha Limpa, de 2010, alterou uma lei de 1990, a Complementar 64, e tem dispositivos que agora empurram Bolsonaro ao cadafalso. A norma garante que um candidato derrotado também seja punido por abusos de campanha, não só quem vence eleição. E elevou de três para oito anos o período de inelegibilidade. A punição é contada a partir do primeiro dia útil após o primeiro turno em que se deu o “abuso”, daí Bolsonaro, se condenado, ter chances de disputar em 2030, quando completará 75 anos.

No julgamento, Bolsonaro será alvo de um voto duro por parte do atual corregedor-geral do TSE, Benedito Gonçalves, relator da ação do PDT. Gonçalves é a favor de condenar o ex-presidente, segundo CartaCapital apurou. Seu voto tem mais de 450 páginas e foi enviado previamente aos colegas de corte. O juiz defende que a conduta de Bolsonaro diante dos embaixadores faz parte de uma história mais longa, a sabotagem da confiança popular nas urnas e no sistema eleitoral. Por isso, ao longo do processo, botou lupa em ­duas transmissões em vídeo feitas por Bolsonaro na web em julho e agosto de 2021, um ano antes do encontro com diplomatas. Nas lives, o então presidente lançava dúvidas sobre as urnas. Na segunda, vazou o inquérito da PF cujo teor seria descrito aos embaixadores no Alvorada.

Lira prefere Bolsonaro no papel de cabo eleitoral do que como candidato – Imagem: Bruno Spada/Ag. Câmara

O corregedor aproveitou ainda um fato que veio a público só cinco meses após a ação do PDT. Trata-se da “minuta golpista” encontrada em janeiro pela PF na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. A “minuta” era o desenho de um decreto presidencial que faria uma intervenção no TSE (metade dos interventores seria militar) para anular a eleição de outubro e organizar outra. A inclusão do documento no processo é contestada pelo defensor de Bolsonaro, Tarcisio Vieira de Carvalho Neto. O advogado foi ministro do TSE de 2014 a 2021 e participou, em 2017, do julgamento da última grande ação contra um candidato presidencial. À época, a corte absolveu Dilma Rousseff por 4 a 3, e Carvalho Neto deu um desses quatro votos. Agora no caso de Bolsonaro, espera-se uma condenação por 5 a 2, caso não haja surpresas. Os únicos com quem o capitão parece contar são Kássio Nunes Marques, que chegou ao Supremo em 2020 indicado pelo capitão, e Raul Araújo, do STJ. Em 2022, Araújo tomou várias decisões a favor do candidato à reeleição. Entre elas, proibiu Lula de propagar vídeos em que chamava o rival de “genocida” e vetou manifestações de apoio de músicos ao petista no festival Lollapalooza.

Além de reclamar da inclusão no processo de um documento cuja existência só foi conhecida meses após a ação do PDT, a defesa de Bolsonaro nega o abuso de poder político no convite aos embaixadores para uma reunião, pois Bolsonaro era presidente e podia promover esse tipo de encontro. Era direito do capitão, acrescentam os advogados, responder àquela reunião promovida pelo TSE 45 dias antes. E o candidato não teria mentido sobre as urnas, apenas expressado sua visão sobre o tema. O tribunal, argumenta a defesa, não pode juntar ao processo as ­lives bolsonaristas de 2021 e a minuta golpista. De quebra, afirma, ao divulgar um comunicado após a reunião, o TSE reduziu a influência do presidente em relação às urnas. Será? Em janeiro do ano passado, 27% dos brasileiros expressam dúvidas sobre as urnas eletrônicas, conforme pesquisa do PoderData. Em dezembro, eram 37%, porcentual idêntico àquele que Bolsonaro teve dos votos totais.

Moro e Dallagnol caíram em desgraça. Os juízes do STF, como prega Costa Neto, tendem a transformar Bolsonaro em “mártir”? – Imagem: Redes sociais

O presidente do PL, Valdemar Costa Neto, saiu a campo nos últimos dias para tentar salvar Bolsonaro. Disse ser “impossível” o TSE condená-lo. Mais recentemente, deu declarações em tom de aviso aos juízes da corte. Em 5 de junho, inaugurou a sede do PL em São José do Rio Preto, cidade do interior paulista, e comentou que a derrocada de Deltan Dallagnol e Sergio Moro pode um dia se abater sobre os togados do TSE que condenarem Bolsonaro. Os mentores da Operação Lava Jato “ultrapassaram os limites da lei” com Lula, disse Costa Neto, e “vão pagar caro”. O primeiro perdeu em maio o mandato de ­deputado, cassado após ação do PT na Justiça eleitoral. O outro, senador, tem um encontro marcado com a Corte graças a um processo do PL. “Não quero que aconteça isso com eles, eu não tenho nada contra eles, mas vão pagar caro. E isso vai acontecer com o atual TSE, se tomar uma medida dessas (com Bolsonaro). É um crime impedir um camarada de ser candidato”, afirmou. Um dia depois, Costa Neto foi mais explícito em um vídeo no Twitter: “As coisas mudam. Como o PT mudou, do buraco vieram para presidente da República, amanhã nós (bolsonaristas) vamos estar na Presidência”.

Na campanha de 2018, Costa Neto namorou a candidatura de Bolsonaro, mas desistiu de colocar o PL a serviço do “mito” por causa da péssima impressão deixada pelo capitão em conversas preliminares. Fechou com o então tucano Geraldo Alckmin. A filiação do capitão à legenda em novembro de 2021 foi um casamento de conveniência. Um precisava de um partido grande para disputar a eleição, o outro queria um puxador de votos para encorpar as bancadas. Quanto maior uma legenda, mais dinheiro recebe de dois fundos públicos. Na campanha de 2022, o PL teve 5% dos 4,9 bilhões de reais do fundo eleitoral, que financia as candidaturas. Foi o sexto maior naco. A sigla elegeu a maior bancada da Câmara (99 deputados), e terá neste ano o maior porcentual, 17%, do 1,1 bilhão do fundo partidário, que custeia as despesas ­anuais da atividade política.

Presidente do PL, Valdemar Costa Neto tenta salvar o pescoço de Bolsonaro e vaticina uma volta por cima

A eventual cassação dos direitos políticos de Bolsonaro não desanima o comandante do PL. Na eleição de 2024, para prefeitos e vereadores, Costa Neto apostará na figura do ex-capitão. Na cidade de São Paulo, ele e Bolsonaro ensaiam uma aliança com o prefeito Ricardo ­Nunes, do MDB, sondado para trocar de partido e se filiar ao PL. Pior para o deputado federal Ricardo Salles, jogado ao mar. ­Costa Neto antevê uma disputa difícil com Guilherme Boulos, do PSOL, numa cidade em que Lula bateu Bolsonaro no segundo turno (53% a 46%). Sonha, aliás, em conseguir para o PL o espólio deixado pelos tucanos no interior do estado. No Rio de Janeiro, há dois generais da reserva como possíveis candidatos: o ­deputado ­Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e ­Walter Braga Neto, companheiro de chapa de Bolsonaro. Braga ­Neto deve escapar da condenação no TSE, na ação movida pelo PDT. O Ministério Público Eleitoral é a favor da degola do capitão, mas pede a absolvição do general.

A aposta no capitão como cabo eleitoral tem boas chances de dar certo, na avaliação do cientista político Felipe Nunes, da consultoria Quaest. “O Bolsonaro continuará uma força política mesmo que tenha os direitos políticos cassados, como parece provável. O bolsonarismo é um movimento de massa, construído em torno de valores, e independe de quem seja o candidato”, diz. Nunes deve lançar em julho um livro sobre o que chama de “país calcificado”. A ideia por trás do conceito é a de que há uma divisão política de tal magnitude no Brasil, nunca vista antes, e que essa divisão tem na origem a visão de mundo, os valores professados pelos indivíduos. O bolsonarismo seria, antes de tudo, um “movimento identitário”. “A condenação do Bolsonaro vai gerar um sentimento de revolta e injustiça entre os bolsonaristas, e isso vai fortalecê-lo como líder de massas”, prossegue Nunes. Algo parecido com o que aconteceu com Lula após a injusta prisão na Lava Jato.

Gonçalves, relator, preparou um voto com mais de 450 páginas – Imagem: Lucas Pricken/STJ

Tal análise explica em parte por que um articulador político do Palácio do Planalto parecia apreensivo ao comentar o assunto com CartaCapital na terça-feira 13. Segundo a fonte, o TSE irá “vitimizar” Bolsonaro, caso o condene. O mesmo articulador enxerga um risco para o ­governo no Congresso, onde o Planalto ainda não conseguiu uma base de apoio sólida, especialmente entre os deputados. O risco seria uma aglutinação da extrema-direita, o que poderia vir a influenciar o comportamento de Arthur Lira.

Há, no entanto, outras consequências relevantes do julgamento. “É importante o reconhecimento, por parte da justiça eleitoral, dos abusos de poder político cometidos por Bolsonaro. Isso tem implicações para o governo e para a democracia brasileira. Constrange novos abusos”, defende a presidente da Associação Brasileira de Ciência Política, Vanessa Elias de Oliveira, professora da UFABC. Para ela, de fato Bolsonaro poderá funcionar melhor como cabo eleitoral, em razão da alta rejeição pessoal, o que atrapalha uma candidatura. “Políticos de direita ocuparão o espaço deixado. No entanto, políticos menos radicais têm mais chances de êxito, pois o discurso radical e conservador gera também muita rejeição. Há ainda muito espaço para uma direita moderada e um político com este perfil tem chances de atrair os bolsonaristas e muitos outros eleitores para seu lado. Não podemos nos esquecer que Bolsonaro teve 48% dos votos no segundo turno.” •

Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo