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Injeção na testa

A fraude na carteira de vacinação de Bolsonaro desenrola outros novelos, da tentativa de golpe à morte de Marielle Franco

Foto: Alan Santos/PR e Isac Nóbrega/PR
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As 23h50 de 6 de janeiro, uma sexta-feira, o delegado federal Anderson Torres partiu de Brasília rumo ao estado norte-americano da Flórida. Havia sido ministro da Justiça até dezembro e voltara a chefiar a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, cargo ocupado de 2019 a 2021. Oito horas antes do voo, aprovara o plano de segurança para Brasília no fim de semana. A cidade sediaria, dali a dois dias, um protesto bolsonarista. A área de inteligência da secretaria era dirigida por uma ex-colaboradora de Torres no ministério, a delegada Marília Ferreira de Alencar, e dizia não haver nada de preocupante à vista. O interino da pasta durante a ausência do titular era outro delegado ex-colaborador no ministério, Fernando de Sousa Oliveira, e coube a este dar ao governador do DF, Ibaneis Rocha, informes tranquilizadores em 8 de janeiro. Naquele dia, o comando operacional da PM local estava nas mãos de um coronel, Jorge Eduardo Naime, cuja esposa tinha ocupado cargo no período em que Torres serviu ao governo Bolsonaro. Como se sabe, aquele domingo foi tudo, menos tranquilo.

Quando Torres viajou, Bolsonaro estava na Flórida. O capitão tinha saído do Brasil em 30 de dezembro, penúltimo dia no poder. Levara o coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, chefe da equipe de ajudantes de ordens da Presidência, e dois homens de confiança, Max Moura, sargento da PM do Rio de Janeiro, e Sérgio Cordeiro, capitão do Exército. Moura e Cordeiro continuariam como assessores do marido de Michelle após o fim do mandato, por designação do próprio, e Cid esperava assumir o comando de um batalhão de elite em Goiás. No dia da decolagem, o coronel usou o celular para acessar a carteira de vacinação do chefe no aplicativo federal ConecteSUS e obter um certificado de imunização contra a Covid-19. O cartão tinha sido acessado duas vezes por aqueles dias, em 22 e 27 de dezembro, a partir de computadores da Presidência. Ué, Bolsonaro não era contra a vacina?

O ajudante de ordens Mauro Cid une-se ao ex-ministro Anderson Torres na lista de problemas do capitão

Como mandatário, o ainda presidente poderia viajar sem provar que tomara a vacina, privilégio do cargo. Depois, não (a menos que o país de destino desistisse de cobrar a comprovação dos viajantes, como fará os Estados Unidos a partir de 11 de maio). Em 21 de dezembro, véspera de um acesso ao cartão vacinal de Bolsonaro por um computador presidencial, o então secretário de Saúde de Duque de Caxias, cidade da Baixada Fluminense, havia colocado no sistema do SUS dados sobre duas doses que o então presidente e a filha de 12 anos teriam tomado. Esse tipo de informação é o que garante a emissão do certificado. Pela inserção feita por João Carlos de Sousa Brecha, as agulhadas no capitão teriam ocorrido em 13 de agosto e em 14 de outubro de 2022 em Duque de Caxias. Um dia depois, Brecha fez o mesmo favor para Moura e Cordeiro, dupla que teria sido imunizada nos mesmos dias de Bolsonaro. O trio dos falsamente vacinados estivera na cidade na data de outubro, mas não em agosto.

Brecha já havia quebrado um galho para Cid em 2021. Facilitou à esposa do coronel, Gabriela, a obtenção de um certificado de vacinação no ConecteSUS, apesar de ela não ter tomado a vacina. Descoberta feita pela Polícia Federal no celular do coronel, cujo sigilo tinha sido quebrado perto da eleição por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Cid estava na mira da PF por causa da participação, ao lado de Bolsonaro, em uma transmissão ao vivo na web em agosto de 2021. No vídeo, o então presidente vazou um relatório policial sigiloso sobre uma invasão hacker do sistema do Tribunal Superior Eleitoral na disputa de 2018. O objetivo era minar a confiança dos brasileiros nas urnas eletrônicas.

Além dos achados no celular de Cid, o delegado Fábio Alvarez Shor montou o quebra-cabeça das falsas injeções com apoio da Controladoria-Geral da União. No início deste ano, a CGU enviara um ofício à PF no qual relata a suspeita de uma possível inserção de dados fajutos no sistema do SUS sobre o cartão de vacina de Bolsonaro. A combinação de pistas levou à prisão preventiva (sem prazo de validade), na quarta-feira 3, de Cid, Moura, Cordeiro, Brecha, do sargento Luís Marcos dos Reis, funcionário de Cid na Presidência, e de mais um personagem militar, o major do Exército Ailton Gonçalves Moraes Barros.

O major foi o elo de Cid com a prefeitura de Duque de Caxias, onde o então secretário de saúde inseriria dados mentirosos no SUS a favor de Bolsonaro e cia. Para cumprir a missão, Barros apelou a um miliciano, o ex-vereador carioca Marcelo Siciliano, que teria influência na prefeitura. Siciliano foi um nome inicialmente apontado como mandante do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, em 2018. Em um áudio de WhatsApp de 30 de novembro de 2021, Barros diz a Cid: “Eu sei dessa história da Marielle toda, irmão, sei quem mandou (matar). Sei a porra toda, entendeu?” À época do áudio, o ajudante de ordens estava empenhado em obter um certificado de vacinação para a esposa. Suspeita-se que tenha feito o mesmo posteriormente em favor de Bolsonaro.

Acionado pelo major, Siciliano pediu um favor a Barros. Queria que este pedisse a Cid para dar uma palavrinha com o cônsul norte-americano no Rio justamente sobre o assassinato de Marielle, causa de presumíveis problemas consulares do miliciano. A história do tipo “uma mão lava a outra” está descrita no relatório de 114 páginas do delegado Shor, enviado em 18 de abril a Moraes com pedidos de prisão da turma encarcerada na quarta-feira 3 durante a Operação Venire. Inserir dados falsos em um sistema de informação é crime (de 2 a 12 anos de cadeia). Caso um documento público seja fraudado e usado, tem-se outra infração (de 1 a 5 anos). Juntar-se em bando para delinquir é formação de quadrilha (de 3 a 8 anos).

Diagnóstico. Torres alegou “confusão mental”, mas Moraes manteve sua prisão e espera o depoimento sobre a famosa minuta do golpe – Imagem: Mateus Bonomi/Anadolu Agency/AFP, Marcos Oliveir/Ag. Senado e Marcelo Camargo/ABR

Ao ser detido, Cid tinha 190 mil reais cash em casa. O coronel foi levado para interrogatório pela PF, mas permaneceu em silêncio, por orientação de advogados. A casa de Bolsonaro em Brasília sofreu busca e apreensão e o celular foi confiscado pelos agentes, diante dos quais o ex-presidente manteve a boca fechada. Antes de comparecer à polícia, o capitão falou a jornalistas e negou saber da falsificação de sua carteira vacinal (os filhos Flávio, senador, e Eduardo, deputado, reclamam de perseguição ao pai). O coronel Cid é mais um encarcerado a complicar a situação de Bolsonaro. O outro é Torres.

O ex-ministro da Justiça está preso em uma unidade da PM do Distrito Federal desde 14 de janeiro, acusado de “omissão dolosa” diante da invasão e do quebra-quebra de 8 de janeiro no Palácio do Planalto, no Congresso e no Supremo. Como secretário de Segurança Pública de Brasília, era a autoridade máxima responsável pela proteção da Praça dos Três Poderes, independentemente da segurança própria de cada um dos prédios. Torres voltou da Flórida direto para o xilindró. Ao depor à PF em 2 de fevereiro, disse ter perdido o celular nos EUA, mas se comprometeu a informar a senha de acesso. A entrega ocorreu dois meses depois. Os policiais haviam, no entanto, se virado com um software israelense, o ­Cellebrite, capaz de quebrar senhas e recuperar conteú­do apagado de celulares. Consta que não encontraram nada relevante.

As senhas que Torres entregou não eram verdadeiras. Cobrados por Alexandre de Moraes, os advogados do preso responderam: “Tendo em vista o atual estado mental do requerente, com lapsos frequentes de memória e dificuldade cognitiva, a confirmação da validade das senhas, na hodierna conjuntura, revela-se sobremaneira dificultosa”. A alegação de que o ex-ministro está com a saúde abalada tem sido usada pela defesa para tentar convencer o magistrado a revogar a prisão preventiva e, no mínimo, convertê-la em domiciliar. Haveria até risco de suicídio, segundo os defensores. O juiz pediu um parecer sobre as condições de saúde e da prisão de Torres. Conclusão: não há necessidade de transferir o detento para um hospital penitenciário. Ele tem recebido comida e assistência psicológica adequadas.

As revelações da Operação Venire tendem a reforçar a ação que ameaça tornar Bolsonaro inelegível

O estado de saúde foi a razão invocada pelos advogados para cancelarem um depoimento de Torres, em 24 de abril, sobre uma operação da Polícia Rodoviária Federal no dia do segundo turno da eleição. Os federais descobriram que, às vésperas da operação, Torres havia viajado à Bahia para solicitar o apoio da PF local à blitz rodoviária. O então ministro recebera um relatório de inteligência sobre o tamanho da votação de Bolsonaro e de Lula nos estados no primeiro turno. A Bahia dera ao petista a maior vantagem numérica, quase 4 milhões de diferença. O relatório foi produzido pela delegada Alencar, aquela que Torres levou para a inteligência da Segurança Pública do DF e que nada de preocupante havia detectado em relação ao 8 de janeiro. A PF insiste em ouvir Torres sobre o episódio da Bahia. ­Moraes deu até 8 de maio para o interrogatório.

Não é o único fato que o magistrado e a PF querem esclarecer. Há ainda a “minuta do golpe” achada na casa de Torres em 12 de janeiro. Trata-se do rascunho de um decreto presidencial que impunha uma junta militar no TSE para anular a eleição. O último secretário-executivo do Ministério da Justiça era um oficial, o brigadeiro Antônio Ramirez Lorenzo. Torres havia chegado à pasta ao mesmo tempo que Bolsonaro pusera na Defesa o general Walter Braga Netto, vice na derrotada chapa reeleitoral do capitão. Ou seja, entrou no governo quando o capitão parecia armar-se para a guerra. Ao depor à PF em 2 de fevereiro, disse que não havia falado da “minuta” com Bolsonaro e que o documento não passava de papelada inútil. Por que, então, não havia jogado fora? Moraes negou duas vezes a libertação de Torres e em ambas citou a “papelada inútil” como um dos motivos para a continuidade da prisão.

A minuta foi incluída em um processo que logo será julgado no TSE, presidido por Moraes. O caso pode desaguar na perda dos direitos políticos de Bolsonaro por oito anos. Com as revelações sobre fraudes na vacinação de Jair e cia., o pano de fundo do julgamento piorou para o capitão. De quebra, o novelo puxado a partir do coronel Cid na investigação vacinal pode reforçar a prova de que Bolsonaro foi o mentor da insurreição de 8 de janeiro. •

Publicado na edição n° 1258 de CartaCapital, em 10 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Injeção na testa’

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