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Eclipse bolivariano

O esforço de Lula para promover a integração do continente é ofuscado pela recepção a Nicolás Maduro

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Passo em falso. Não havia necessidade de encampar a defesa do líder venezuelano – Imagem: Marcelo Camargo/ABR
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Em quatro anos, Jair Bolsonaro e representantes de seu governo fizeram 150 viagens à Arábia Saudita. Reiteradas vezes o ex-capitão convidou o príncipe Mohammed bin Salman, acusado de ordenar o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, colaborador do Washington Post, para visitar o Brasil. Estava disposto a oferecer imunidade absoluta de chefe de Estado ao herdeiro da monarquia saudita, que à época respondia a um processo nos EUA pelo homicídio – arquivado no fim do ano passado, a pedido do presidente Joe Biden – e ainda figura como réu na Alemanha por crimes contra a humanidade. Não fosse a revelação de que Bolsonaro tentou embolsar as joias presenteadas pelo rei Salman, avaliadas em mais de 18 milhões de reais, é provável que esse intenso vaivém do ­staff presidencial tivesse passado em brancas nuvens pelos jornais brasileiros.

Nem parece a mesma mídia que, nos últimos dias, uniu-se num estridente rechaço à recepção dada por Lula ao “ditador” da Venezuela. “No noticiário, houve quem ficasse indignado com o fato de Nicolás Maduro ser recebido com honras de chefe de Estado. Ora, e ele é o quê?”, pergunta Gilberto ­Maringoni, professor de Relações Internacionais da UFABC, em entrevista ao canal de ­CartaCapital no YouTube.

Lula poderia, de fato, ter sido mais contido na recepção ao presidente venezuelano. Tirar Maduro do isolamento e reintegrá-lo ao debate regional seria por si só um tento do brasileiro e dispensaria tratar os pendores autoritários do vizinho como um problema de comunicação, uma guerra de “narrativas”. O petista entregou a faca e o queijo à oposição e os reais e importantes objetivos da reunião acabaram em segundo plano. De largada, o Brasil arrancou do venezuelano o compromisso de honrar a dívida com o ­BNDES. As parcelas atrasadas somavam mais de 1,14 bilhão de dólares em novembro do ano passado (5,6 bilhões de reais, na atual cotação). Além disso, Lula discutiu a retomada da compra da eletricidade gerada no vizinho para abastecer Roraima, único estado não conectado ao Sistema Interligado Nacional e, por isso mesmo, dependente da cara energia gerada por termoelétricas. Ao acenar com a proposta de defender a entrada da Venezuela nos BRICS, também abriu as portas para o empresariado brasileiro retomar as exportações ao país.

De acordo com um estudo do Ipea, as vendas de produtos brasileiros para Caracas atingiram um pico em 2008, no segundo governo Lula, quando totalizaram 5,13 bilhões de dólares. A partir de 2016, com o progressivo distanciamento do Brasil do regime de Maduro, até o efetivo rompimento das relações diplomáticas por Bolsonaro, as exportações despencaram, chegando a 1,09 bilhão em 2021. “Sempre tivemos balança superavitária com a Venezuela”, observa Maringoni. “Por razões ideológicas, o Brasil perdeu um excelente parceiro comercial. Esse espaço foi ocupado de forma muito agressiva pela China, e não será fácil recuperar o terreno rapidamente, mas precisamos entrar nesta disputa.”

O presidente tenta reavivar a Unasul e chegou a propor uma moeda comum para as transações comerciais na região

As críticas ao encontro com Maduro também eclipsaram a reunião de cúpula convocada por Lula para reavivar a ­Unasul. O neoliberal Luis Alberto Lacalle Pou, presidente do Uruguai, não perdeu a chance: “Se há tantos grupos no mundo tentando mediar para que a democracia seja plena na Venezuela, para que os direitos humanos sejam respeitados e não haja presos políticos, o pior a fazer é tapar o sol com a mão”. Acuado pela oposição à direita, que há pouco conquistou maioria na Assembleia Constituinte do Chile, Gabriel Boric fez eco ao uruguaio. “Não é uma construção narrativa, é uma realidade.” Ambos os países vetaram qualquer menção à Unasul no comunicado conjunto da reunião de líderes sul-americanos, bem como a proposta que estabelecia um prazo de 120 dias para um Grupo de Alto Nível, com representantes indicados pelos presidentes, traçar um plano para a retomada da integração regional. Em vez disso, os líderes sul-americanos se dispuseram a mobilizar o corpo diplomático para aprofundar a cooperação em áreas específicas, como saúde, infraestrutura e combate ao crime organizado.

Lula tem ambições maiores. Chegou a propor a adoção de uma moeda comum para as transações comerciais entre os países do continente, uma forma de reduzir a dependência do dólar. Ou as nações sul-americanas se unem ou “continuarão sendo tratadas como marionetes nas mãos das grandes economias”, disse, logo após o encontro. O presidente sugeriu, ainda, uma atuação mais efetiva dos bancos de desenvolvimento, como a Corporación Andina de ­Fomento (CAF), o Fundo Financeiro para Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata), o Banco do Sul e o próprio BNDES, no financiamento de grandes projetos de infraestrutura. Irritou-se, porém, com a insistência das perguntas de jornalistas sobre a democracia na Venezuela e sobre o suposto caráter ideológico da Unasul. “Não vejo a mesma exigência do mundo democrático em relação à Arábia Saudita, é muito estranho”, observou Lula, antes de lembrar que o direitista ­Álvaro Uribe, então presidente da Colômbia, participou da criação do bloco.

“Muita gente dizia que Lula ficava favorecendo ditaduras amigas, mas ele convocou uma reunião com todos os líderes da América do Sul, incluindo ­Guillermo Lasso, do Equador, e Lacalle Pou, do ­Uruguai, que são reconhecidamente políticos de direita. Ele está tentando resgatar a Unasul como uma organização de Estados, não de governos de esquerda”, avalia Maringoni. O professor da UFABC acrescenta que a ampliação dos BRICS, com a eventual incorporação da Venezuela, não é um desejo só de Lula. “Aos chineses, interessa a entrada de mais países para fortalecer o bloco, que concentra 40% da população mundial e mais de um terço do PIB global. Hoje, a riqueza produzida por Brasil, Rússia, Índia, China e ­África do Sul já é superior àquela das demais nações que integram o G-7. •

Publicado na edição n° 1262 de CartaCapital, em 07 de junho de 2023.

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