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Boiadeiros em fúria

Em clara afronta ao STF, o Senado aprova a toque de caixa projeto que reaviva o “marco temporal”

Festa interrompida. A inovação proposta por Moraes pode inviabilizar novas demarcações – Imagem: Marcelo Camargo/ABR e Evaristo Sá/AFP
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As lideranças da Articulação dos Povos Indígenas no Brasil, a Apib, estão com a sensação de que obtiveram uma vitória de Pirro. Na quinta-feira 21, o Supremo Tribunal Federal sepultou a tese do “marco temporal”, exótica proposição dos ruralistas para restringir as demarcações de terras indígenas às áreas ocupadas pelos povos originários em 5 de outubro de 1988. Foram 9 votos a 2. Apenas os ministros André Mendonça e Kássio Nunes Marques, nomeados por Jair Bolsonaro, toparam legalizar todo o esbulho ocorrido antes da promulgação da Constituição. A decisão foi um alívio, sem dúvida, mas o inferno mora nos detalhes. Os magistrados deixaram para um segundo momento a definição de como serão indenizados os fazendeiros que ocupam essas áres. O modelo agora aprovado tende a encarecer demais o custo das demarcações, a ponto de inviabilizá-las. Não bastasse, a reação da bancada ruralista no Congresso veio a galope.

Na segunda-feira 25, líderes da Frente Parlamentar da Agropecuária reuniram-se para tramar um “contra-ataque” ao STF. Decidiram acelerar a tramitação de um projeto de lei que reaviva o marco temporal, tornando inválidas as demarcações de terras indígenas não ocupadas até 1988. Isso eliminaria 63% das atuais reservas. Pedro Lupion, presidente do bloco, ameaçou ainda retirar da gaveta a PEC do deputado Domingos Sávio, do PL, que altera o artigo 49 da Constituição para que o Congresso suspenda, por maioria qualificada, decisões da Suprema Corte. “Há um ativismo judicial claro, claríssimo.”

A Corte rejeitou a tese central dos ruralistas, mas passou a prever indenizações pelas terras desapropriadas

Toda essa movimentação ocorreu às vésperas da retomada do julgamento para definir o modelo de indenizações. Pela regra vigente até então, a União só era obrigada a pagar aos fazendeiros que ocupam áreas demarcadas pelas benfeitorias existentes, como casas e celeiros. O ministro Alexandre de Moraes propôs, porém, que o governo federal também indenizasse os ocupantes de “boa-fé” pela terra nua – gerando um “gasto incalculável”, segundo um parecer da Advocacia-Geral da União. Pior: as terras só poderiam ser destinadas aos indígenas após o pagamento dessas reparações.

Enquanto os magistrados se debruçavam sobre o tema, os ruralistas os golpea­vam no Parlamento. Ignorando a decisão do STF, conseguiram aprovar o PL do marco temporal no Senado em votação relâmpago. Foram 43 votos a 21. “Não se trata de nenhum tipo de enfrentamento com o Supremo”, desconversou o presidente da Casa Legislativa, Rodrigo Pacheco. “É apenas uma posição do Congresso, considerando que temas dessa natureza devem ser deliberados por aqui”.

Lula vetará o projeto, antecipa Randolfe Rodrigues, líder do governo no Congresso. Ainda que não fosse, certamente seria contestado judicialmente. “Não é que o STF tenha criado esse direito fundamental. Ele só reconheceu o que estava previsto na Constituição. Não há dúvida de que o projeto é inconstitucional e cabe ao STF declarar isso”, observa o advogado Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo e colunista de CartaCapital. Não será tão simples, porém, pacificar a crise entre os poderes.

Dinaman Tuxá, coordenador-executivo da Apib, não ficou surpreso com a rebelião parlamentar. “Sabemos que o Congresso é anti-indígena, por isso priorizamos a luta no STF”. Segundo ele, os povos originários também estão insatisfeitos com a postura do Executivo, que não vem atuando de forma incisiva em defesa dos indígenas no Parlamento. “Agora, vamos exigir mais da bancada governista.”

No debate sobre as indenizações, a tese de Moraes acabou prevalecendo, com algumas nuances. Se não for possível promover o reassentamento em outro local, os proprietários de “boa-fé” deverão ser ressarcidos também pelas terras desapropriadas, decidiu o STF. “Só mesmo no Brasil o governo compraria de volta terrenos ilegalmente ocupados”, ironiza Eliésio Marubo, coordenador jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. “Isso não faz sentido e não tem o menor fundamento constitucional”, avalia.

Alerta. “Não existe orçamento para pagar indenização pelas terras nuas”, alerta o coordenador da Apib – Imagem: Tukumã Pataxó/APIB

Tuxá também demonstra preocupação com o rumo que o julgamento tomou no STF e teme que o novo modelo de indenizações paralise as próximas demarcações. O líder da Apib é taxativo ao afirmar que não existe orçamento para pagar os valores de todos os terrenos sobrepostos a terras indígenas. Um levantamento feito pela Agência Pública nas dez maiores áreas em litígio revela que o ­custo pode ultrapassar a cifra de 1 bilhão de reais, enquanto estão previstos apenas 200 milhões de reais para demarcações de terras indígenas no Projeto de Lei Orçamentária de 2024. Neste ano, Lula liberou, por medida provisória, um crédito extraordinário de 640 milhões de reais para a proteção dos povos indígenas, mas somente 146,7 milhões foram destinados para a Funai providenciar a regularização fundiária das TIs.

Para a advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental, o ideal seria manter as indenizações como estava previsto na Constituição. “Toda construção feita antes da portaria declaratória emitida pela Secretaria de Patrimônio da União é considerada de boa-fé. Depois disso, todos sabem que se trata de uma terra indígena e, portanto, não há o que ser indenizado.” Além do pagamento pelas benfeitorias, a legislação já previa o reassentamento de pequenos agricultores que venham a ser impactados, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra.

O STF passou a discutir a indenização de terras nuas porque existem casos em que governos estaduais emitiram títulos de propriedade sobre terras indígenas e essas áreas foram vendidas a particulares. “Nesses casos excepcionais, os prejudicados pela ação estatal podem pleitear indenização também pela terra nua. Mas isso deveria ser analisado caso a caso, como propôs o ministro Cristiano Zanin, e não ser tratado como questão central.”

“O Executivo está ausente nas articulações no Parlamento”, lamenta Tuxá

O secretário-executivo do Conselho Missionário Indígena, Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, tem receio de um aumento dos conflitos no campo. “Pela decisão do STF, os proprietários só serão obrigados a sair das terras indígenas depois de receber indenização. Eles devem inflar o preço para dificultar o processo”, alerta. Vale lembrar a situação do povo Guarani Kaiowá, na região de Dourados, em Mato Grosso do Sul, onde os fazendeiros locais chegaram a formar milícias para afugentar os indígenas.

Durante o julgamento no STF, o ministro Dias Toffoli também levantou a possibilidade de autorizar atividades exploratórias em terras indígenas, como garimpo e agropecuária, decisão que caberia ao Legislativo. Para Oliveira, a proposta é um acinte. “O movimento indígena aceita o diálogo, mas somente após os territórios estarem demarcados e regularizados.” O líder indígena critica ainda a proposta de “meio-termo” defendida pelo ministro da Agricultura, Carlos Henrique Fávaro. “Esse ‘meio-termo’ pressupõe que os territórios indígenas possam ser reduzidos ou explorados por não indígenas. Fala-se na possibilidade de permitir arrendamento de terras, são iniciativas que beneficiam apenas o agronegócio. Na prática, essa proposta precariza os direitos garantidos pela Constituição Federal.”

Tuxá acrescenta que os povos estão reorganizando a luta no âmbito regional, dentro das terras indígenas, e também no nacional. “Estamos em diálogo com a base aliada na Câmara, com senadores sensíveis à nossa causa, mas sentimos a ausência do Executivo nessas articulações.” O coordenador-geral do Centro Indigenista de Roraima, Edinho ­Macuxi, concorda: “O discurso é muito bonito, mas, com quase um ano de governo, vimos pouca ação em termos práticos”. •

Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ”

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