Justiça

Comissão Arns e entidades indígenas criticam propostas de indenização discutidas no STF após queda do Marco Temporal

Tribunal discute nesta quarta um modelo de ‘recompensa’ aos ‘ocupantes de boa-fé’ de terras indígenas; medida não agrada lideranças dos povos originários

Povos indígenas de diversas etnias participam do primeiro dia do Acampamento Terra Livre. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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A Comissão Arns e entidades indígenas enviaram ao STF uma nota com três apontamentos sobre as medidas reparatórias propostas pelos ministros durante os votos pela inconstitucionalidade do Marco Temporal. O julgamento volta nesta quarta-feira 27 e deve discutir as definições da nova tese a ser seguida para as demarcações de terras indígenas.

Por 9 votos a 2, o STF rejeitou a tese do Marco Temporal na última quinta-feira 21. No entanto, com divergências entre os ministros, as próximas sessões definiram a derrubada ou incorporação das sugestões propostas em cada voto.

No documento, as entidades destacam a preocupação com a indenização aos ‘ocupantes de boa-fé’ das terras em disputa, proposta pelo ministro Alexandre de Moraes. O texto recomenda que a eventual indenização seja ‘completamente desassociada do procedimento demarcatório’ e que o pagamento não seja prévio e nem condicione a demarcação e que não seja estendido o direito às terras nuas – apropriadas pelos fazendeiros sem o intermédio ou concessão do estado.

O texto também reafirma a necessidade de que não seja permitida uma permuta de territórios indígenas com outras áreas – durante o julgamento, os ministros discutiram qual seria a melhor saída para a demarcação de terras que hoje constituam cidades, vilas ou qualquer construção que não possa ser movida ou desapropriada. Em seu voto, a ministra Carmen Lúcia reconheceu que a relação dos povos indígenas com o território está intimamente ligada à cultura e sua ancestralidade, não podendo ser ‘movida’.

A entidade crítica, ainda, a decisão do ministro Dias Toffoli, que em seu voto determinou que o Congresso crie leis, em até doze meses, para discutir a exploração econômica em territórios indígenas.  “A mineração em terras indígenas representa gravíssimo risco aos direitos desses povos, bem como à proteção do meio ambiente”, destaca trecho da nota.

O texto também reforça que a decisão sobre o Marco Temporal com base no recurso extraordinário julgado não envolvia a discussão sobre mineração e exploração econômica em terras indígenas, por tanto, ‘o STF deveria manter-se firme’ em relação ao que foi debatido.

Além da Comissão Arns, assinam o comunicado as seguintes entidades:

  • a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Apib
  • o Conselho Indigenista Missionário, o Cimi
  • a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC
  • e a Associação Brasileira de Antropologia, ABA

Leia abaixo a íntegra da nota:

NOTA PÚBLICA | COMISSÃO ARNS, APIB, CIMI, SBPC, ABA – Sobre as teses jurídicas apresentadas no julgamento do Marco Temporal

No último dia 21 de setembro, o Supremo Tribunal Federal deu importante contribuição à proteção do direito dos povos indígenas, bem como à defesa do meio ambiente no contexto de crise climática. No julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.017.365, o STF afastou, pela expressiva maioria de 9 votos contra 2, a tese do marco temporal, que é francamente incompatível com a garantia constitucional do direito à terra dos povos originários brasileiros. Nossa Corte Constitucional mostrou estar atenta ao seu dever maior de proteger os direitos fundamentais de grupos sociais minoritários e vulnerabilizados. Está agendada para o próximo dia 27 de setembro a continuidade do julgamento, com a definição das teses jurídicas de repercussão geral, que devem reger a matéria no futuro.

Nesse cenário, e considerando os debates que vêm sendo travados pelos ministros do STF e pela sociedade, as entidades resolvem externar sua preocupação em relação a três aspectos que estão em discussão nessas teses jurídicas.

Em primeiro lugar, discute-se o cabimento de indenização, pelo valor da terra nua, ao particular de boa-fé que tenha recebido títulos do Poder Público incidentes sobre áreas que constituam terras indígenas, mas nas quais não estejam caracterizados o marco temporal ou o renitente esbulho.

Nessa hipótese, é fundamental que a eventual indenização esteja completamente desassociada do procedimento demarcatório, e que o pagamento da indenização não seja prévio à demarcação, nem condicione a plena fruição dos direitos territoriais pelos povos indígenas envolvidos. Tal indenização, cujo cabimento deve ser aferido caso a caso, em processo administrativo ou judicial próprio, tem fundamento na responsabilidade civil do Estado pela prática de ato ilícito – a concessão indevida de títulos de propriedade a não indígenas –, e não na própria demarcação. O responsável pelo seu pagamento deve ser o ente público que tenha praticado o ato ilícito em questão. Afinal, o poder constituinte originário foi expresso ao vedar a indenização do valor da terra nua nas demarcações, mesmo para particulares de boa-fé (art. 231, § 6º, da Constituição de 88).

Do contrário, as demarcações pendentes ficarão inviabilizadas na prática, pois se tornarão completamente dependentes de vultosos recursos financeiros estatais, que são escassos. Haverá retardamentos ainda maiores nas demarcações, as quais já estão muitíssimo atrasadas – pela Constituição, o Poder Público deveria tê-las finalizado até o ano de 1993 (art. 67 do ADCT). Nesse ínterim, os povos originários permanecerão privados de segurança jurídica no gozo do seu direito fundamental mais importante – o direito à terra –, e o meio-ambiente ficará mais exposto à devastação, pois, como todos os estudos científicos comprovam, os indígenas são os melhores guardiões das florestas, neste momento em que a sua preservação é essencial para a continuidade da vida humana no planeta.

Em segundo lugar, é preciso afastar peremptoriamente a possibilidade de permuta de terras indígenas com outras áreas, hipótese que não foi contemplada pela Constituição Federal. As terras indígenas são absolutamente infungíveis.

Não é suficiente, para corrigir tal equívoco, registrar o caráter excepcional da permuta, ou condicioná-la à autorização da própria comunidade indígena e da FUNAI. Fórmulas jurídicas abertas – como a excepcionalidade – são aplicadas por autoridades administrativas, que em determinados cenários podem ser contrárias aos direitos indígenas, ou ceder a interesses de outra natureza. A autorização da própria comunidade tampouco afasta o vício constitucional da solução, já que o direito ao território indígena é indisponível (art. 231, § 4º, Constituição de 88). Ademais, em contexto de crise e diante de pressões externas, comunidades podem se ver forçadas a abrir mão de seus territórios tradicionais, em troca de outros que não tenham para elas o mesmo valor espiritual. A Constituição brasileira não consagra essa possibilidade, que o STF não deve chancelar.

Em terceiro lugar, as teses jurídicas não devem tratar do tema altamente polêmico e complexo da mineração em territórios indígenas. Tal assunto jamais foi discutido no âmbito do Recurso Extraordinário nº 1.017.365, e não cabe introduzi-lo no processo na undécima hora, sem que os povos indígenas e a sociedade tenham tido a oportunidade de se manifestar sobre a matéria, sob pena de grave afronta ao devido processo legal.

A mineração em terras indígenas representa gravíssimo risco aos direitos desses povos, bem como à proteção do meio ambiente. Por isso, não cabe obrigar o Congresso Nacional a legislar sobre a matéria em 12 meses, sob o falso pretexto de que dessa maneira se promoveriam direitos dos povos indígenas.

Em nota pública divulgada neste dia 21 de setembro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, na qualidade de legítima representante dos povos indígenas de todo o país, externou a sua contrariedade quanto ao debate do assunto neste julgamento, bem como a solução proposta no voto do Ministro Dias Toffoli. Nas palavras da APIB: “A mineração em Terras Indígenas, atividade por meio da qual se pretende autorizar toda sorte de exploração econômica de territórios tradicionais, possui alto grau de prejudicialidade à garantia e manutenção dos Direitos dos Povos Originários, além de ameaçar diretamente sua sobrevivência física, religiosa e cultural. A história recente nos mostra que a existência de empreendimentos para extração de recursos hídricos, orgânicos (hidrocarbonetos) e minerais, na prática, gera a destruição de territórios indígenas, a contaminação das populações por agentes biológicos e químicos, como o mercúrio, e o esgarçamento do tecido social destas comunidades, além de enfraquecer ou inviabilizar sua Soberania Alimentar e submeter mulheres e crianças à violência física e sexual”. É preciso levar a sério o que dizem os povos indígenas sobre os seus próprios direitos.

As entidades permanecem confiantes de que, na definição das teses de repercussão geral no Recurso Extraordinário nº 1.017.365, o STF manter-se-á firme no exercício do seu papel maior de guardião da Constituição e protetor dos direitos fundamentais de minorias, como os povos indígenas brasileiros.

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