Entrevistas

‘Alguns disseram que não foi racismo o que eu sofri’, diz Thainara Faria

A deputada do PT em São Paulo articula elaboração de cartilha antidiscriminatória para servidores da Alesp, após caso de discriminação

A deputada estadual Thainara Faria (PT-SP). Foto: Rodrigo Romeo
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Mulher, negra e bissexual, a petista Thainara Faria sofreu racismo dentro da Assembleia Legislativa de São Paulo no primeiro mês de mandato como deputada estadual, iniciado em março deste ano. Na ocasião, ela denunciou publicamente que estava sofrendo atos de discriminação por parte de servidores da Casa.

O infeliz episódio, ao menos, motivou uma iniciativa maior: a elaboração de uma cartilha com orientações contra as opressões raciais, de gênero e de orientação sexual nas dependências da Alesp.

Em entrevista a CartaCapital, Faria informou que o documento está sendo discutido com deputadas estaduais de diferentes partidos. Segundo ela, as 25 mulheres da Casa foram convidadas para a articulação. Nesta semana, uma terceira reunião deve ser realizada para revisar o texto.

“Alguns disseram que não foi racismo o que eu sofri e querem fazer algumas alterações na cartilha, mas a gente precisa avançar”, declarou ela à reportagem.

Há uma perspectiva para que a cartilha seja lançada em junho. Entre as autoridades já convidadas, está o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida. A iniciativa é uma das ações imediatas após a denúncia. Além disso, houve a criação de cursos obrigatórios para servidores da Alesp, com orientações antidiscriminatórias.

A pauta sobre a opressão de minorias ocorre num momento em que a Assembleia prepara o terreno para um inquérito sobre procedimentos de transição de gênero em um hospital universitário de São Paulo, o Hospital das Clínicas. O assunto será tema de uma CPI defendida por bolsonaristas.

Conforme apurou CartaCapital, o PT bateu o martelo e escolheu nesta terça-feira 16 duas parlamentares para representar a bancada na CPI: a socióloga Beth Sahão e a sindicalista Professora Bebel.

“Nós, da esquerda, temos o dever de defender a comunidade LGBTQIA+”, salienta Faria.

Confira os principais trechos da entrevista.

Deputada mostra a folha de identificação de todos os parlamentares da Alesp, após servidora impedi-la de assinar o livro de presença dos deputados — Foto: Reprodução

CartaCapital: Qual o perigo que a CPI sobre transição de gênero representa?

Thainara Faria: Eu penso que o objetivo deles é criminalizar qualquer tipo de atendimento público de saúde às pessoas transgêneres. Para nós, é uma oportunidade de jogar luz nesse tema e dizer que todos têm direito ao acesso à saúde gratuita integral e à transição de gênero, se assim for a opção. Vamos discutir com a sociedade para barrar qualquer tipo de retrocesso, não queremos que haja a intimidação dos médicos e profissionais de saúde.

CC: Na sua avaliação, por que a comunidade LGBT+ continua sendo um instrumento para os bolsonaristas propagarem as suas ideologias?

TF: Na realidade, eles têm uma leitura distorcida daquilo que é a literatura cristã, a Bíblia. É uma leitura muito incorreta do que foi a imagem de Jesus Cristo. Eles usam as nossas pautas, de negros, LGBTs, mulheres, jovens, para criar cortinas de fumaça sobre outros retrocessos. Porque, na verdade, a política de morte e de fome que o ex-presidente Jair Bolsonaro impunha já é uma política de extermínio das nossas populações. Eles querem discutir essas questões no Parlamento para dizer que estão combatendo o mal, enquanto os verdadeiros retrocessos estão acontecendo, como, por exemplo, se vier a ser privatizada uma Sabesp.

CC: A esquerda deve temer a defesa da pauta da LGBT+, para evitar que bolsonaristas ganhem espaço?

TF: De jeito nenhum. O preconceito vem do fato de as pessoas não terem acesso ao conhecimento e à definição correta do que as coisas são. Discutir toda a sigla LGBTQIA+ é fundamental para que a sociedade compreenda que não oferecemos qualquer tipo de risco. Há pouco tempo, a OMS deixou de considerar que temos uma doença por sermos LGBTs. No imaginário coletivo, isso ainda é um tabu muito grande, assim como o racismo na escravização. Eles nos colocam como monstros sociais, que ameaçam a família e os bons costumes, coisa que não é verdade. Nós, da esquerda, temos o dever de defender a comunidade LGBTQIA+.

Por isso, inclusive, fiz questão de estar nas comissões de Infraestrutura e de Assuntos Econômicos. Quero debater os direitos das minorias dentro desses temas, não só na comissão de Direitos Humanos, porque ali não se discute para onde vai o orçamento, ou, por exemplo, para onde vai a habitação de interesse social para a pessoa LGBT que é expulsa de casa. A gente tem que fugir dessas camas de gato que eles fazem para nós e discutir se a pessoa LGBT vai ter o que comer, se vai ter emprego, se vai ter onde morar ou ter condições de permanecer na escola.

CC: Depois do caso de racismo na Alesp, quais são as prioridades para o texto da cartilha?

TF: Nosso mandato tem uma linha muito pedagógica em relação ao que são as discriminações, sejam elas raciais, de gênero ou de orientação sexual. Com os instrumentos que a gente dispõe nesta Casa, nós queremos letrar e ensinar. A prioridade hoje é discutir com cada servidor, assessor nomeado, com cada pessoa no organismo da Alesp, para que as próximas gerações que adentrem aqui não precisem passar por isso. As leis que regem o nosso país não foram feitas por nós. Então, o nosso trabalho é de formiguinha, começa pequeno, mas terá um reflexo grande.

Agora, a gente tem uma obrigatoriedade de fazer um curso aqui na Alesp em relação ao letramento racial, à discriminação de gênero e à orientação sexual, para que as pessoas tenham orientação de como proceder e de que serão penalizadas caso cometam qualquer ato de discriminação. Caso não fizerem o curso, terão os seus salários congelados. Para quem for entrar, não vai poder tomar posse se não fizer esse curso. Essas ações práticas são as primeiras depois dos atos racistas, além do lançamento da cartilha.

CC: Em uma Casa onde haverá uma CPI sobre transição de gênero, será possível construir um acordo sobre uma cartilha contra opressões?

TF: Alguns disseram que não foi racismo o que eu sofri e querem fazer algumas alterações na cartilha, mas a gente precisa avançar e emplacar mudanças. A cartilha não vai passar por votação em plenário, está sendo construída pelos organismos internos da Casa e com a revisão e avaliação das deputadas de todos os partidos que quiseram participar. Assim que tiver um acordo entre as parlamentares de que ela está ok, a gente vai fazer o lançamento.

O acordo está sendo possível. Eu acredito que faz parte da política ceder um pouquinho, caminhar dois passos, voltar um, para que todos se sintam confortáveis. Essa cartilha vai atender da direita à esquerda, todas as mulheres, as pessoas negras e LGBTQIA+, dentro e fora da Casa. Não só é possível, como é necessário. Se a gente não fizer esse tipo de revisão, vamos estar sendo omissos à realidade social.

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