Política
A tigrada e os domadores
Os militares afundam no caso das joias sauditas e em outros vexames e agora encaram uma ofensiva civil em Brasília para adestrá-los


Em 18 de janeiro, dez dias após a tentativa de golpe bolsonarista em Brasília, o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva discursou a subordinados no Comando Militar do Sudeste, em São Paulo, e comentou que a eleição de Lula havia sido “indesejada” pela “maioria” dos militares. Três dias depois, o presidente demitiu o então comandante-geral do Exército, Júlio Cesar de Arruda, e botou Paiva no lugar, pois o general também tinha dito no discurso que as Forças Armadas são apartidárias e têm uma missão, não importa quem esteja no poder. Arruda havia sido, no mínimo, omisso no levante do dia 8, executado por indivíduos que passaram semanas acampados na porta do QG do Exército na capital brasileira. E depois conseguiu adiar a prisão deles por algumas horas, por exemplo.
Um dos que acharam “indesejada” a vitória de Lula foi o chefe da Marinha de Bolsonaro, o almirante Almir Garnier Santos. Este se recusou a passar o cargo ao almirante Marcos Sampaio Olsen em 5 de janeiro, um fato bastante incomum. Permaneceu no posto até 31 de dezembro, quando findou o mandato do capitão, e escafedeu-se. A data de sua dispensa constava de um decreto assinado por Bolsonaro em 29 de dezembro.
“Isso tudo vai entrar para a primeira-dama”, disse o almirante Albuquerque aos fiscais da Receita – Imagem: Redes sociais
No dia da assinatura do papel, o sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva viajou de Brasília a São Paulo para uma missão: tentar pegar joias avaliadas em 16,5 milhões de reais que estavam na alfândega do aeroporto de Guarulhos. O sargento trabalhava na Presidência desde março de 2022. A viagem a São Paulo foi uma ordem do tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, “faz-tudo” no gabinete de Bolsonaro no Palácio do Planalto. Como prêmio pela dedicação ao capitão por quatro anos, Cid, filho de um general amigo de Bolsonaro colocado pelo então presidente em um cargo em Miami em 2019, havia sido designado, perto do fim do governo, para chefiar uma unidade verde-oliva a 200 quilômetros do Palácio do Planalto. Desconfiado de todos os milicos após o 8 de janeiro, Lula queria anular a nomeação. Arruda não aceitou, e esse foi outro motivo de sua degola.
As joias que o sargento Jairo deveria buscar tinham vindo da Arábia Saudita 14 meses antes, em 26 de outubro de 2021, na comitiva do almirante Bento Albuquerque, o ministro de Minas e Energia da época. Albuquerque voltava de um evento no Oriente Médio. As peças estavam na mochila de um tenente da Marinha, Marcos André dos Santos Soeiro, chefe do escritório do Ministério no Rio de Janeiro na ocasião. A bagagem de Soeiro tinha sido vasculhada pela Receita Federal no aeroporto. O tenente não havia declarado as joias ao Fisco antes: nem que eram dele, nem de terceiros, nem do governo. Numa situação dessas, o “Leão” cobra 50% do valor do bem, a título de imposto, e tasca multa de 50%. Como a fatura era gordíssima, ninguém da comitiva de Albuquerque pagou, e o Fisco apreendeu o material. O prazo para pagar acabou em julho de 2022, e ninguém pagou.
Soeiro, tenente da Marinha, tentou entrar com as joias na mochila sem declarar ao Fisco. O tenente-coronel do Exército Mauro Cid, faz-tudo de Bolsonaro, buscou reaver as peças – Imagem: Marinha do Brasil e Alan Santos/PR
Ao saber da revista no subordinado na alfândega, Albuquerque foi aos fiscais, tentar desembaraçar as joias. “Isso tudo vai entrar para a primeira-dama”, disse ele, conforme registro de uma câmera de segurança. Seria um presente saudita para o casal Michelle e Jair. O pacote, prosseguiu o almirante, estava fechado desde as Arábias, daí que ele supostamente desconhecia o conteúdo. Ao falar do episódio ao Estado de S. Paulo, jornal que revelou o rolo das joias em 3 de março, o almirante relatou a existência de outro presente saudita. Este segundo pacote também era de joias e não havia sido descoberto pela Receita. Ficou 13 meses em um cofre no Ministério de Minas e Energia (Albuquerque deixara o governo em maio). Em novembro de 2022, foi enviado à Presidência e catalogado como pertencente ao acervo pessoal de Bolsonaro, o que significa que o capitão levaria consigo após o mandato. Quando o sargento Jairo esteve no aeroporto de Cumbica para tentar pegar as joias do pacote de 16,5 milhões, disse a um fiscal: “Não pode ter nada do antigo (presidente) pro próximo (Lula), tem que tirar tudo e levar”. A conversa foi gravada por outra câmera da alfândega.
É comum um presidente ganhar presentes de outro país enquanto exerce o poder, mas guarda para si aquilo que for de pouco valor e tiver caráter bem pessoal, como roupa e perfume. Obras de arte, por exemplo, devem ir para o acervo público da Presidência. No tempo de Bolsonaro, o responsável por decidir sobre o que seria acervo privado ou público era um oficial da Marinha, o capitão de corveta Marcelo da Silva Vieira, o número 2 do Departamento de Documentação Histórica da Presidência. Bolsonaro guardou consigo o conteúdo do segundo pacote (relógio de ouro, abotoadura, caneta, anel), conforme admitiu publicamente na quarta-feira 8. Mas ele tinha direito a isso? E o primeiro pacote, o de 16,5 milhões, por que Soeiro não o declarou ao Fisco em outubro de 2021? Era presente mesmo para Michelle? Ou seria propina disfarçada, e para quem?
A Polícia Federal tentará desfazer esses mistérios. Há ao menos dois ilícitos potenciais no caso. Descaminho, que é iludir a Receita para não pagar imposto (pena de 1 a 4 anos de prisão), e peculato, a apropriação por agente público de um valor ou um bem público pelo qual deveria zelar (de 2 a 12 anos). Os primeiros chamados a depor à PF foram Albuquerque e Soeiro. “Um almirante de esquadra envolvido diretamente nesse tipo de situação é algo de que não se tem notícia no Brasil”, diz João Roberto Martins Filho, ex-presidente da Associação Brasileira de Defesa e autor do livro Os Militares e a Crise Brasileira, de 2021. “Este caso é lastimável. Não interessa ao Brasil a desmoralização dos militares. Eles estão em um processo de perda de prestígio muito acentuado”, afirma o historiador Manuel Domingos Neto, estudioso das Forças Armadas.
A “acentuada” perda de prestígio ajuda a entender uma ofensiva de civis para domar a tigrada dos quartéis. Uma investida a unir governo, membros do Congresso e do Judiciário e que, em uma das frentes, coloca em cena o famigerado artigo 142 da Constituição, aquele do “golpe militar dentro da lei”.
As joias eram mesmo um presente? Ou seriam propina disfarçada? – Imagem: Receita Federal/SP
Lula tirou a Agência Brasileira de Inteligência das mãos dos militares e passou-a à Casa Civil. Desde a sua criação, em 1999, a Abin tinha estado só dois anos fora do Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, órgão comandado por generais. O escolhido do petista para dirigi-la é o delegado Luís Fernando Corrêa, que esteve à frente da PF no segundo governo do petista. A indicação foi enviada no início do mês ao Senado, a quem cabe aprovar (ou não). O presidente encomendou a Corrêa uma reformulação da Abin. Não quer vê-la basear seus informes em notícias de jornal (já era assim em seus outros mandatos), nem ser pego de surpresa por fatos como o levante de 8 de janeiro, embora servidores da agência digam que alertaram o GSI sobre o que estava a caminho.
Marco Cepik, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em relações e segurança internacional, deve ser o novo diretor da escola da Abin. Na segunda-feira 6, ele esteve em um debate online e deu uma ideia do que vai pela cabeça de Lula. A Abin, comentou ele, precisa produzir conhecimento sobre temas prioritários para o desenvolvimento brasileiro, como mudança climática, segurança alimentar, perfil de exportações. A segurança cibernética do País é outra área vital. Recorde-se que Dilma Rousseff foi espionada pelos americanos quando presidente. A cultura do “inimigo interno”, causa da obsessão pelo MST, tem de ser abandonada. A atual Estratégia Nacional de Inteligência, de 2017, envelheceu. Trata como principal risco à segurança nacional o terrorismo islâmico, mas há coisa pior, segundo Cepik: o “extremismo violento, ideologicamente motivado com essas ideologias esquisitas do século XXI”, quase sempre “de extrema-direita”.
A PF investiga dois ilícitos potenciais no episódio: os crimes de descaminho e peculato
No Congresso, os deputados do PT querem mudar o artigo 142 da Constituição, definidor do papel das Forças Armadas. O jeito como o artigo foi escrito resultou de pressões do ministro do Exército da época da Constituinte, o general Leônidas Pires Gonçalves. Dá corda à interpretação de que os quartéis seriam um poder igual aos demais (governo, Congresso e Judiciário) e teriam o direito de se meter em caso de briga entre os três, a pedido de um destes. Um “poder moderador”, em suma. Nessa interpretação, estaria abençoado o golpe militar legal. Era esse “golpe” que os extremistas defendiam no governo Bolsonaro, e o capitão deixava pairar no ar que poderia ocorrer.
Em fevereiro, o PSOL foi ao Supremo Tribunal Federal contra a interpretação do golpe legal. Em junho de 2020, o juiz Luiz Fux, da mesma Corte, tinha dado uma liminar a refutá-la. Os petistas acham necessário ir além e cortar o mal pela raiz. A proposta de mexer no artigo 142, de autoria do deputado paulista Carlos Zarattini, acaba com a possibilidade de os militares serem chamados para garantir a lei e a ordem. O Brasil, diz Zarattini, tem tradição de “interferência indevida dos militares na vida política nacional”, e não dá mais para ser assim. Não será, porém, um debate fácil ou rápido, reconhece ele, dada a presumível resistência da extrema-direita e de alguns conservadores ditos moderados.
A proposta também busca forçar os militares a entrar imediatamente para a reserva, se quiserem assumir cargo público. Hoje, eles podem permanecer dois anos na ativa. Quem está na reserva não tem tropa, eis a diferença. O ministro da Defesa, José Múcio, negociou com as Forças Armadas uma ideia parecida e deve enviá-la em breve ao Planalto. Seria exigido de um militar que dê baixa do quartel, ao disputar eleição. Uma penca de fardados concorreu em 2022 e quem perdeu voltou para a caserna lambuzado de partidarização. A propósito, Múcio negociou ainda para que não haja, em 31 de março, uma mensagem do Exército a festejar o golpe de 1964, comum na era Bolsonaro.
Em 2021, a deputada Perpétua Almeida, do PCdoB do Acre, havia proposto mudar a Constituição para exigir que um militar passasse à reserva, antes da posse em cargo público civil. O objetivo era combater a politização da turma. Dois meses antes, o País vira um caso explícito de politização, e que deu em nada. O então general da ativa Eduardo Pazuello, que tinha estado em um palanque com Bolsonaro, respondera a um processo disciplinar por isso e saíra incólume. As alegações dele em sua defesa e a absolvição do então chefe do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, foram um escárnio. Talvez por vergonha, o governo passado tascou um sigilo de cem anos no caso, revogado em fevereiro pela Controladoria-Geral da União.
Pazuello participou de ato político como general da ativa. Moraes enviou para a Justiça Comum os casos de militares envolvidos no 8 de janeiro – Imagem: Arquivo/STF, Alan Santos/PR e Sergio Lima/AFP
Em 23 de maio de 2021, um domingo, Pazuello subiu em um caminhão-palanque ao lado do então presidente no fim de uma motociata no Rio e discursou brevemente. “Fala galera… Não ia perder esse passeio de moto de jeito nenhum. Tamo junto, hein? Parabéns a vocês, parabéns para a galera que taí prestigiando o PR. O PR é gente de bem, o PR é gente de bem. Abraço galera”. PR é como certos círculos burocráticos chamam o presidente. O regulamento disciplinar do Exército diz, no item 57, que é uma transgressão “manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”. Já o item 107 diz ser transgressão “tomar parte em qualquer manifestação coletiva, seja de caráter reivindicatório ou político, seja de crítica ou de apoio a ato de superior hierárquico”.
Pazuello não era mais ministro da Saúde, deixara o cargo dois meses antes. Não era mais auxiliar de Bolsonaro, era “apenas” um general da ativa. Entrou para a reserva em março de 2022, concorreu a deputado federal pelo PL do Rio em outubro e elegeu-se o segundo mais votado do estado, com 205 mil votos. Ao defender-se no processo da “motociata”, disse que tinha sido convidado a ir por Bolsonaro, por “laços de amizade e camaradagem”, e até avisado na véspera o próprio chefe do Exército. Afirmou ter ficado longe da comitiva presidencial no trajeto de moto da Barra da Tijuca ao Aterro do Flamengo, mas que, no final, mesmo de máscara anti-Covid, foi reconhecido por muita gente e, devido ao assédio, resolveu refugiar-se na comitiva. Bolsonaro soube da sua presença por perto, pediu que ele subisse no caminhão-palanque e deu-lhe o microfone. Tudo de improviso e nada que configurasse ato político-partidário, pois, afinal, Bolsonaro nem sequer era filiado a um partido naquele dia. Paulo Sérgio engoliu as explicações, e caso encerrado.
Uma verdadeira “acochambração”, na visão do coronel da reserva Marcelo Pimentel de Souza, ele próprio alvo de diversos processos disciplinares em razão de críticas à politização das Forças Armadas. Para o coronel, o general Paiva, atual chefe do Exército, deveria reabrir o caso. Detalhe: naquele discurso de janeiro sobre os quartéis terem uma missão a cumprir, não importa quem esteja no poder, Paiva havia dito, sobre o caso Pazuello, que “não pode aceitar o pecado, o erro” e que “o erro aconteceu”.
Para afastar qualquer interpretação golpista, o PT quer mudar a redação do artigo 142 da Constituição
Os pecados de fardados pela tentativa de golpe em 8 de janeiro serão julgados pela Justiça Comum, e não na Militar. Foi o que decidiu o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo. Na investigação sobre executores, financiadores e mentores do 8 de janeiro, a PF interrogou PMs de Brasília. “Os policiais militares ouvidos indicaram possível participação/omissão dos militares do Exército Brasileiro, responsáveis pelo Gabinete de Segurança Institucional e pelo Batalhão da Guarda Presidencial”, disse a PF a Moraes. O magistrado autorizou os federais a vasculharem milicos e resolveu que o processo correria no próprio STF. Uma coisa é crime militar, outra, crime de militar, anotou ele. O futuro presidente do Superior Tribunal Militar, brigadeiro Francisco Joseli Parente Camelo, que assume em 16 de março, apoiou a decisão. Ele foi o chefe dos pilotos dos aviões presidenciais nos governos anteriores de Lula.
O Supremo está prestes a tomar outra decisão capaz de esvaziar a Justiça Militar. Na quarta-feira 8, retomou um caso sobre a instância apropriada para julgar militares cometedores de crimes contra civis em operações de Garantia da Lei e da Ordem. Essas GLOs serão abolidas, caso prospere no Congresso a mudança do artigo 142 da Constituição. “A Justiça Militar brasileira é um refúgio para eles, não existe igual em nenhuma outra democracia. Nos Estados Unidos, só julga crimes de guerra”, diz João Roberto Martins Filho, defensor de extingui-la. Ele lembra que o Exército brasileiro testou no Haiti técnicas de matança contra a população para depois empregar em GLOs em morros do Rio. O Brasil comandou uma força de paz da ONU no Haiti, que durou de 2004 a 2017. O primeiro chefe da tropa foi o general Augusto Heleno, ministro do GSI de Bolsonaro. “Hoje, nós temos uma doutrina de Garantia da Lei e da Ordem, graças a tudo que vivemos no Haiti”, afirmou Heleno em depoimento aos acadêmicos Cesar Castro e Adriana Marques.
Para Manuel Domingos Neto, as Forças Armadas merecem uma reforma ampla. A supremacia das forças terrestres, ou seja, do Exército, sobre mar (Marinha) e ar (FAB) não se justifica em um país do tamanho do Brasil (com costa e espaço aéreo enormes) e no atual estágio tecnológico. Essa supremacia se constata, por exemplo, no orçamento de cada força. O Exército tem este ano 52 bilhões, enquanto Marinha e Aeronáutica, juntas, têm 57 bilhões. Segundo o historiador, as forças não deveriam mais ter um chefe próprio, mas um comando conjunto e rotativo entre cada uma delas, como nos EUA.
Mas aí talvez seja pedir um pouco demais dos civis, que, por ora, parecem dispostos a domar a fera fardada.
Adendo da redação: Diante do escândalo das joias sauditas, Bolsonaro deve esticar as férias na Flórida e adiar o triunfal retorno ao Brasil, prometido para este mês. O presentinho saudita de 16,5 milhões de reais também pode ser investigado por uma CPI na Câmara, já solicitada pelo deputado petista Rogério Correia. Com a profusão de crimes cometidos durante e após o seu mandato presidencial, é espantoso, contudo, que o capitão ainda possa circular livremente pelo mundo, sem qualquer mandado de prisão contra ele. No país que mantém intactas a casa-grande e a senzala, a postura vacilante do Judiciário brasileiro é, de certa maneira, previsível, mas não deixa de ser assombrosa. •
Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A tigrada e os domadores’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.