Opinião
Traição à pátria
Bolsonaro cometeu um novo ato de sabotagem à democracia e às eleições, mas somente os tribunais superiores, o TSE e o STF, esboçam uma reação mais severa aos seus ataques
Um dos grandes males da política brasileira, a contaminar a legislação e a mídia, consiste em não nomear as coisas como elas são. A linguagem é cheia de floreios, de firulas mofadas e sem conteúdo. O que Bolsonaro fez ao reunir-se com os embaixadores estrangeiros na segunda-feira 18 foi um ato de traição à pátria.
Conceitual e historicamente, trata-se de um ato de traição à pátria porque foi um ato de deslealdade ao Estado brasileiro e ao Brasil, a quem ele deve lealdade. O presidente da República tem a obrigação moral e institucional de ser leal às instituições democráticas e à Constituição.
Bolsonaro atacou um dos poderes mais importantes da República, que é o Tribunal Superior Eleitoral, guardião das eleições e, portanto, do ato originário da soberania popular. Essa deslealdade criminosa foi perpetrada perante os representantes de poderes estrangeiros por ele convocados com o fim de cometer o crime e desmoralizar o Brasil. Foi um ato de sabotagem à democracia e às eleições.
Juristas confirmam que Bolsonaro cometeu vários crimes, passíveis de impeachment e de perda de direitos políticos. Ele cometeu crimes que atentam contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, com previsão no artigo 4º da Lei do Impeachment. Usa o poder para tentar impedir a livre execução da lei eleitoral, crime previsto no artigo 7º da mesma lei. O capitão incita os militares à desobediência à ordem constitucional, constrange o livre exercício do Poder Judiciário e prega a desobediência do cumprimento de decisões judiciárias, crimes também previstos na Lei de Reponsabilidade.
O mais grave diante de todos os crimes que Bolsonaro vem cometendo ao longo de seu mandato é que eles adquiriram o status de normalidade. Apenas os tribunais superiores – o Supremo Tribunal Federal e o TSE – oferecem uma resistência mais dura e contundente à continuada prática desses delitos. A responsabilidade principal à naturalização dessa conduta indigna do presidente deve-se à omissão cúmplice e criminosa do Congresso Nacional é à mediocridade da oposição parlamentar.
No máximo, o que vem do Congresso são manifestações tíbias do presidente do Senado. Já Arthur Lira tornou-se sócio das violações de Bolsonaro. O Congresso Nacional, que deveria ser o guardião da democracia, o garantidor político da Constituição, a expressão nacional dos interesses e da soberania do povo, transformou-se num antro de interesseiros, ávidos por verbas secretas para comprar seus novos mandatos com o dinheiro do povo.
A oposição parlamentar, com honrosas exceções, quando não é cúmplice mesquinha das violações de Bolsonaro, como foi no caso da PEC Camicase, opõe apenas uma resistência frouxa, como se toda a violência do presidente contra a democracia fizesse parte da normalidade democrática. Não há contundência, não há interdição, não há ações extraordinárias para se oporem aos desmandos de Bolsonaro e de Arthur Lira. O regimento da Câmara e o Processo Legislativo se transformaram em letra morta, pois o Congresso é um terreno baldio de moralidade e um templo profano de negociatas e vendições.
A maior parte do Eixo Monumental de Brasília e da Praça dos Três Poderes tem cores cinzentas, ocupada por pessoas com faces cinzentas – excluídas as exceções. Por isso louve-se a resistência dos tribunais superiores, do STF e do TSE, às investidas antidemocráticas de Bolsonaro. Louvem-se os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso que, no enfrentamento ao golpismo de Bolsonaro, têm demonstrado coragem cívica e virtudes pessoais e funcionais para fazerem cumprir a lei e a Constituição.
É preciso dar um basta às murmurações e conspirações de Bolsonaro, estão dizendo os ministros. É preciso dar um basta, estão dizendo os tribunais. Cumprir o dever funcional e constitucional deveria ser uma atitude normal na democracia, sem a necessidade de elogios. Mas, como vivemos num país em que, nas instâncias superiores dos poderes, cumprir as regras e a Constituição está se tornando exceção e a violação, a regra, torna-se necessário elogiar essa excepcionalidade que resiste à corrupção e à degradação dos princípios da república e da democracia.
Não basta mudar o presidente. É preciso que haja uma reconstituição ética da política e uma mudança efetiva das estruturas sociais e econômicas do País. Sem isso não haverá justiça social nem democracia efetiva. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1218 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Traição à pátria”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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