Joel Birman

Psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Opinião

Semiologia e cartografias do golpe de Estado fascista no Brasil

Nesta modulação do ódio em direção à construção de pseudoverdades, diferentes mecanismos psíquicos e psicossociais são utilizados

Foto: Joedson Alves/Agencia Brasil
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Em 8 de janeiro de 2023, o Brasil viveu algo inesperado e impensável por um lado, mas perfeitamente previsível: a invasão da Praça dos Três Poderes, em Brasília, por vândalos e terroristas. Vestidos com a camisa verde e amarela, assim como carregando a bandeira brasileira, como se fossem patriotas defensores da Nação.

Não contentes em ocupar a conjunção dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, os insurgentes quebraram todo o patrimônio público com enorme ferocidade. Não apenas bens móveis e imóveis do Estado brasileiro foram destroçados, como também bens artísticos que decoravam o Supremo Tribunal Federal, o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional. Não ficou nada em pé.

A razão disso? A não aceitação pelos insurgentes do resultado do segundo turno das eleições presidenciais, que deu a vitória a Lula, com o argumento de que a eleição teria sido fraudada, pois as urnas eletrônicas não seriam confiáveis e auditáveis.

Tudo começou efetivamente em 1 de novembro de 2022, no dia seguinte ao segundo turno eleitoral, quando os bolsonaristas fecharam as estradas, com a conivência da Polícia Rodoviária Federal e o entorno dos quartéis das grandes capitais do país para incitar assim os militares a aderir ao golpe de Estado. O cálculo era que a população armada por Bolsonaro, com a política da liberação das armas, seriam os milicianos associados com os militares, consumando, enfim, o golpe de Estado.

Toda a invasão ao coração do poder político brasileiro foi realizada à luz do dia, de forma que todos nós poderíamos assistir pela televisão tudo o que ocorria em tempo real, temerosos de que o pior acabasse por acontecer, a saber, a suspensão do Estado Democrático de Direito no país.

De caráter evidentemente militar a política em questão contou, além da participação das classes populares da extrema-direita política, com a religiosidade que marcou todos os eventos em pauta, assim como em todo o governo Bolsonaro o messianismo político-religioso se configurou como um delírio massivo coletivo, em todas as etapas e tempos do golpe de Estado em questão.

Como se sabe, Bolsonaro teve as Igrejas evangélicas como seus aliados, desde a sua eleição. O campo da política no Brasil foi assim transformado num campo teológico- político, de forma que a luta do Bem contra o Mal norteou os embates políticos.

Além disso, na casa do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro foi encontrado uma minuta jurídica para que fosse criado o Estado de Defesa e anular as eleições legais para consumar assim o golpe militar no Brasil. Com isso, Bolsonaro foi partícipe direto em tudo o que ocorreu, seja como liderança intelectual e política, seja como financiador pelo Cartão Corporativo da Presidência da República.

A marca intensiva maior que caracteriza todos esses eventos acima destacados é o ódio. Que modula cada participação e cena delineada pelos golpistas. Aliás, o ódio é também a marca por excelência que se destaca como humor fundamental nos discursos de Bolsonaro, tanto que no governo de Bolsonaro existia um gabinete do ódio, que defendia ações e palavras de ordem violentas em todas as redes sociais. Além disso, Bolsonaro nos torturou a todos durante o seu governo nas suas falas diárias, destilando e fomentando o ressentimento dos humilhados e ofendidos do Brasil, como se ele fosse o salvador da pátria, o Messias da redenção e da restauração brasileira, como a realização teológica-política da salvação da brasilidade infeliz e abandonada.

Assim, o discurso político-religioso de Bolsonaro foi fundamentalmente modulado pelo ódio, incidindo nos corações e mentes dos despossuídos num estilo ao mesmo tempo religioso e militar, confirmando assim a conjunção íntima do discurso teológico-político com o discurso religioso evangélico.

Porém, o canal seminal de difusão e disseminação de todos os discursos bolsonaristas foram desde sempre as redes sociais, onde as verdades são inventadas para torcer e retorcer todas as informações sem que fossem necessários o controle e a checagem das comunicações e enunciados, tal como se realiza nas mídias clássicas, sejam escritas, radiofônicas e televisivas. Com isso, os discursos se inscreveram nos registros cognitivo e moral da pós-verdade, que é um traço característico do discurso pós-moderno.

Entretanto, nesta modulação do ódio em direção à construção de pseudoverdades, que são propagadas como fake news, diferentes mecanismos psíquicos e psicossociais são utilizados, a saber:

  1. Dissonância cognitiva (Festinger), quando o sujeito neutraliza tudo aquilo que coloca em questão as suas crenças;
  2. Dupla mensagem (Bateson), realizada pelas mães ditas esquizofrenogênicas, que enunciou algo e ao mesmo tempo realiza gestos que se opõem a verdade do que foi enunciado;
  3. Desmentido (Ferenczi), quando o sujeito abusador não reconhece o abuso que realizou no Outro e que foi denunciado pelo abusado.

Por todos esses mecanismos os enunciados do ódio se propagam, construindo crenças (inverídicas) que eclodem nas redes sociais com os discursos bolsonaristas. Enfim, seria assim então que o consenso das massas bolsonaristas  se cristalizam e se difundem, com todo o seu potencial de ódio e de disseminação do mal, de forma que foi assim que se constituíram os discursos e a arquitetura semiológica da cartografia bolsonarista no Brasil.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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