Ricardo Carneiro

[email protected]

É professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

Opinião

A sinuca de bico da política macroeconômica

O crescimento observado no início deste ano, a despeito de moderado, teve o mérito de evitar uma desaceleração mais forte. Sua continuidade, porém, não está assegurada

Brasília (DF), 17/07/2023 - Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fala sobre o programa Desenrola Brasil. durante entrevista coletiva a imprensa, E/D. Secretario da SPE, Guilherme Mello, Ministro Haddad, e o Assessor da Secretária de Reformas Econômicas Alexandre Ferreira. Foto Valter Campanato/Agência Brasil.
Apoie Siga-nos no

O crescimento observado no início deste ano, a despeito de moderado – em torno de 2% segundo a maioria das projeções anuais – teve o mérito de evitar uma desaceleração mais forte, mas a sua continuidade não está assegurada. Este desempenho resultou em grande medida do caráter expansionista da política fiscal, com destaque para elevação do salário mínimo, antecipação do 13⁰ do INSS e pagamento dos precatórios.

Essas medidas tiveram seus efeitos concentrados no tempo e serão substituídas, ao longo do ano, por uma postura contracionista, em consonância com o arcabouço fiscal. Se agregarmos a isto a manutenção de um cenário internacional desfavorável, evidenciam-se as enormes dificuldades com as quais terá que lidar a política econômica para estimular a economia.

Nenhum desses dois elementos – a política fiscal restritiva e a manutenção ou exacerbação do ambiente internacional desfavorável – constitui novidades nos cenários econômicos prováveis para 2024.

O crescimento moderado da economia global constitui até uma surpresa positiva ante as previsões de intensa desaceleração. Já a preservação das taxas de juros nos EUA também deveria estar no horizonte, pois sua queda mais rápida era apenas a aposta de um segmento do mercado financeiro, na direção contrária do posicionamento do FED. Ambas, como veremos, atrapalham o crescimento da nossa economia, sobretudo porque a resposta aos novos parâmetros depende, principalmente, da postura do Banco Central.

No plano doméstico, por sua vez, a meta de déficit zero para 2024, que não foi flexibilizada, supõe uma contração fiscal expressiva. A forma pela qual será obtida – aumento de receitas ou corte de despesas – impactará de forma diferenciada o crescimento, mas o efeito negativo será inevitável.

De um ponto de vista empírico, é impossível calcular quanto da deterioração dos indicadores brasileiros – risco-país, taxas de câmbio, juros longos etc. – se deve às mudanças nos mercados internacionais ou, no plano interno, ao anúncio das revisões das metas fiscais por meio do PLDO 2025. Mas é possível afirmar com alguma segurança que o fator externo é dominante. Assim tem sido, de maneira recorrente, no período da crescente integração financeira do País. Ou seja, os ciclos de liquidez globais, nas suas diversas manifestações, têm sido o principal determinante da volatilidade dos nossos indicadores macroeconômicos. As variáveis internas têm algum peso, mas subsidiário e, em muitas ocasiões, constituem um subproduto das mudanças internacionais.

As recentes turbulências no mercado americano foram desencadeadas pela declaração do presidente do FED em evento sobre a economia americana. Curiosamente, o recado de Powell não é distinto de suas manifestações anteriores, nas quais indicou que o início e o ritmo de queda da taxa básica de juros não estavam definidos. Talvez tenha sido mais incisivo no dia 16 de abril, ao afirmar que os números mais recentes da inflação americana tornaram ainda mais incertos o início e a intensidade do corte dos juros. Boa parte dos operadores no mercado americano havia comprado a posição de que haveria três ou quatro cortes dos juros básicos (fed funds) ao longo de 2024. Sob esta presunção infundada, engendrou-se um miniciclo de liquidez com depreciação do dólar, queda dos juros dos títulos longos, valorização das ações e ampliação dos fluxos de capitais para a periferia. As turbulências recentes constituem um ajuste dos mercados à reiteração da postura do FED que, ao fim e ao cabo, e para além dos interesses imediatos, parece ter sido assimilada pelos mercados.

As dificuldades do arcabouço, associadas às metas de saldo primário, serão recorrentes, como ficou explicitado nas mudanças para 2025 e 2026 encaminhadas na PLDO de 2025

A direção do ajuste e seu movimento inicial estão dados, mas pairam dúvidas sobre a duração e a intensidade. A variação nas taxas de juros foi significativa e disseminada, ocorrendo em todo o espectro da curva, todas as bolsas globais perderam valor, bem como as commodities, enquanto o dólar valorizou-se ante as principais moedas. As incertezas sobre a duração do ajuste residem menos na postura do FED do que nas características atuais dos mercados financeiros americanos.

Assim, por exemplo, o atual patamar da taxa básica de juros, de 5,4% ao ano, vem sendo mantido pelo FED desde junho de 2023. A despeito desse patamar elevado, a curva de juros permaneceu invertida. Vale dizer, a aposta do mercado era a de que uma possível recessão e rápida desinflação levariam o FED a cortar a taxa básica mais rápido, o que não ocorreu. Com a taxa básica nesse valor e a sinalização de que permanecerá nesse patamar, os ajustes na curva de juros, em particular nas maturidades mais longas, e a depreciação dos preços de ativos deverão persistir.

O efeito dessa mudança de cenário sobre a economia brasileira não é trivial, em razão do grau de abertura financeira. Os ajustes iniciais nas variáveis-chave – taxa de câmbio e juros longos – já ocorreram e cabe indagar sobre a sua continuidade. A variável mais importante a analisar é a taxa de juros, ou mais propriamente o seu diferencial ante as taxas dos EUA. As atuais taxas americanas estão elevadas e as brasileiros mais ainda, o que define um diferencial expressivo dessas últimas. Esse é o colchão de proteção do investidor estrangeiro, para se defender da flutuação da taxa de câmbio.

A rigor, como a volatilidade do real é alta e nossa moeda está sujeita a períodos de overshooting, essa diferença é, na prática, estreita, em conjunturas incertas como as atuais. Ou seja, o diferencial exigido é maior, para garantir o investidor estrangeiro e evitar a fuga de capitais com a consequente desvalorização da nossa moeda e suas conhecidas implicações. Assim, tudo indica que as taxas de juros domésticas estarão pressionadas ao longo de 2024, independentemente de “riscos fiscais domésticos”.

Há alguns sinais no mercado financeiro brasileiro que merecem ser observados a partir dos pronunciamentos ambíguos do presidente do Banco Central, devidamente interpretados pelo mercado. As posturas, segundo o Boletim Focus, se dividem entre um ritmo mais moderado de corte ao longo do ano, de 0,25% em cada Copom, e uma aposta na manutenção da taxa no patamar de 10,75%. De qualquer modo, estaríamos com uma Selic próxima de dois dígitos em 2024, se tudo corresse bem no cenário internacional.

Cabe anotar que o movimento de elevação de taxas já se materializou nos mercados futuros e no segmento de títulos públicos de longo prazo, durante o mês de abril. Se essas mudanças de taxas de juros se consolidarem, é provável que ocorra tanto um encarecimento do crédito a famílias e empresas, quanto uma elevação do custo de rolagem da dívida pública.

Diante dessas circunstâncias, cabe a pergunta: há alternativas de política econômica para evitar a ampliação da desaceleração que daí adviria? A primeira medida, mas que está fora do alcance do governo e do Ministério da Fazenda, diz respeito a uma gestão mais equilibrada de juros e câmbio. Utilizar mais intensamente os swaps cambiais e moderar os ajustes de juros. No caso do crédito, usar os bancos públicos para uma ação anticíclica mais decisiva, dado que a moderação do crédito privado será inevitável. Por fim, mas não por último, uma postura fiscal menos contracionista e, eventualmente, expansionista, seria decisiva. Esta, todavia, é pouco provável, como veremos a seguir.

O déficit de 2023 foi de cerca de R$ 233 bilhões (2,2% do PIB), dos quais R$ 141 bilhões de despesas primárias recorrentes (1,3% do PIB) e R$ 92,4 bilhões de precatórios excedentes, referentes aos anos de 2022, 2023 e 2024, não contabilizados no limite de gasto. Para 2024, a meta de zerar o saldo admite a banda de variação de -0,25% do PIB do déficit. Como o excedente de precatórios de 2024 já foi liquidado com os demais anos anteriores, no final de 2023, a nova meta supõe um esforço fiscal de 2% do PIB, que representa uma contração fiscal excepcional.

Como assinalado, não é irrelevante a forma pela qual o ajuste será realizado, pelo aumento de receitas ou corte de despesas, pois o efeito contracionista – multiplicador da renda negativo – é mais pronunciado neste último caso. Cabe também assinalar que o efeito positivo, ou o multiplicador positivo do gasto, provavelmente se concentrará no primeiro trimestre do ano, dado o caráter once and for all dos gastos com precatórios e antecipação do 13⁰ do INSS, e a inevitável diluição do aumento real do salário mínimo ao longo do ano.

Em princípio, para 2024, o ajuste no saldo primário privilegiará o aumento das receitas por meio das medidas legislativas explicitadas no PLOA 2024 e convertidas em lei. Há controvérsias sobre o montante a ser obtido por essas medidas. A estimativa do governo na PLOA é de que a integralidade do ajuste seria feita por esse caminho prevendo-se um aumento de 2,2 % do PIB nas receitas. A maior parte dos boletins de bancos e da IFI estimam valores menores, de cerca de 1% do PIB. Isso gera bastante ruído – com o mercado, em torno da viabilidade do déficit, e com o Congresso, no que tange à aprovação de medidas adicionais.

De qualquer modo, um ajuste fiscal dessa magnitude não escapa à caracterização de contracionista e o caminho da sua obtenção promove atritos significativos com a maioria conservadora e fisiológica do Congresso. Ele foi parcialmente viável em 2024 com as medidas aprovadas em 2023. Será viável para 2025, com as medidas a serem aprovadas neste ano?

As controvérsias sobre a arrecadação adicional se explicitam no resultado do déficit para 2024. O governo admite nas suas contas que o déficit será zerado. Os agentes do mercado financeiro e a IFI trabalham com a hipótese de um déficit entre 0,75% e 1% do PIB. A banda de variação da meta permite 0,25% do PIB de déficit, sobrando 0,5% do PIB a equacionar, inclusive por eventual contingenciamento de despesas. Há dispositivos legais que permitem limitar esse último, neste ano, a cerca de 0,25% do PIB. Todavia, é provável que nesse caso a difícil escolha seja entre ampliar o contingenciamento ou descumprir a meta. Assim, no contexto do ajuste fiscal em curso, não haverá espaço para medidas de estímulo no restante do ano. Elas se esgotaram e produziram seus efeitos positivos no primeiro trimestre.

Em resumo, as dificuldades da política econômica para lidar com a situação configura, no curto prazo, uma verdadeira sinuca de bico. Desde logo, porque não tem influência sobre a evolução das turbulências internacionais e, ademais, a abertura financeira da economia brasileira a expõe de maneira intensa a essas eventualidades. Do ponto de vista doméstico, a independência do Banco Central praticamente exclui a Fazenda do manejo da primeira linha de resistência, ou seja, as políticas de câmbio e juros. No plano fiscal, os limites autoimpostos pelo arcabouço tornam improváveis uma resposta anticíclica de maior envergadura em 2024.

As dificuldades do arcabouço, associadas às metas de saldo primário, serão recorrentes, como ficou explicitado nas mudanças para 2025 e 2026 encaminhadas na PLDO de 2025. Do ponto de vista da ampliação das receitas, os percalços se expressam na negociação com um Congresso que é uma mescla de reacionarismo e fisiologismo e que cobra cada vez mais caro a aprovação de medidas legislativas. No âmbito dos gastos, um espaço cada vez mais reduzido para as despesas discricionárias, incluindo os investimentos. E isto em razão dos pisos constitucionais para despesas nobres como saúde e educação ou transferências como a dos benefícios previdenciários.

O aceno de alguns próceres da área econômica para a agenda de corte de gastos, como forma de salvar o arcabouço, é muito preocupante, pois além de caracterizar uma postura contracionista aprofundada, desloca o conflito com o mercado e congresso para a sociedade.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo