Opinião
Regular a mídia não é censura, Monark. É evitar o estado de exceção
WhatsApp e Telegram são, hoje, ‘dark webs’ de bolso que encorajam a busca pelo que há de pior no comportamento humano
Os tocadores de gado do bolsonarismo e suas linhas auxiliares pseudo-liberais, como membros do Partido Novo e o influencer Monark, têm repercutido o argumento de que regular mídias sociais seria uma forma de censura por parte de uma suposta “ditadura da toga”. Como é de costume, não fazem mais que reproduzir suposições do senso comum que associam o termo democracia à livre expressão da opinião privada dos indivíduos, e o termo ditadura ao dever institucional de obedecer regras e normas públicas.
Não entendem, portanto, o papel central dos pesos e contrapesos institucionais numa verdadeira democracia, sem os quais ela descambará, necessariamente, em autoritarismo.
Como a antropologia tem mostrado há mais de um século, existe uma razão pela qual nenhuma sociedade jamais se orientou apenas pelas vontades espontâneas do senso comum. Mesmo uma sociedade altamente horizontalizada – como os ianomâmi, por exemplo – têm os seus “peritos”, xamãs, especialistas tradicionalmente treinados para visualizar, pela via do sonho e do ritual, níveis de causalidade e controle aos quais os indivíduos leigos não têm acesso.
O oposto dos controles sociais não é a liberdade individual, mas estados de exceção, caos e monstruosidade
Toda sociedade funcional e saudável, hoje e no passado, se organiza em torno de um “centro” estruturado por normas e tabus que delimitam os limites do dizível e do pensável. Como não existe ação humana individual fora de normas culturais coletivas, o oposto dos controles sociais não é a liberdade individual, mas estados de exceção, caos e monstruosidade.
A internet que temos hoje abriu fendas graves de estado de exceção na democracias globais, e não apenas no Brasil. Talvez muitos de nós não tenham a real noção, por exemplo, do tipo de conteúdo que circula em abundância em camadas mais opacas da internet, como os aplicativos de mensagens: vídeos e imagens explícitas de torturas, espancamentos, assassinatos, violações sexuais de homens, mulheres, crianças e animais, gravados por celulares ou câmeras de segurança; fraudes, golpes e manipulações de todo tipo; materiais pornográficos não consensuais e extremos.
WhatsApp e Telegram são, hoje, “dark webs” de bolso que encorajam a busca pela audiência do que há de pior no comportamento humano. Essa mídia vem, sub-repticiamente, formando atmosferas de pânico moral e espiritual que, ao que tudo indica, produzem uma base de usuários mentalmente adoecidos, influenciáveis e portanto receptivos ao discurso messiânico da extrema direita, dos fundamentalismos religiosos e das teorias da conspiração.
Em poucos momentos da história ocidental uma tecnologia de mídia alterou tanto, e tão rapidamente, o centro organizador da sociedade tal como a internet das big tech, que se consolidou após a crise de 2008. Um precedente é a prensa tipográfica de Gutenberg, que também permitiu contornar os intermediários centrais na Europa medieval – a Igreja –, fazendo proliferar rapidamente contestações e novas identidades anti-establishment no início do século XVI.
Nas aulas de história, aprendemos que a Revolução Protestante que daí decorreu germinou a semente da modernidade e, paradoxalmente, do próprio Estado-nação laico. O que não costumam nos ensinar é que isso se deu às custas de uma ruptura violenta que lançou o continente em cem anos de guerra civil generalizada, as chamadas guerras de religião – estima-se que só a Guerra dos Trinta Anos tenha vitimado um terço da população alemã.
Estamos preparados para correr esse risco, apenas para continuar garantindo o lucro de empresas bilionárias e seus CEOs? Ao contrário do que alegam os bolsonaristas, regular a internet não tem nada a ver com censurar usuários individuais. Mesmo a remoção de conteúdos e perfis de influenciadores de acordo com as leis já existentes tem uma eficácia limitada. Além de não fazer mais que enxugar gelo, esse procedimento inevitavelmente leva o legislador (ou a plataforma) a recair em contradição: uma hora modera um lado, depois o outro, gerando insatisfações generalizadas sem nunca de fato resolver o problema. E ele de fato nunca será resolvido por essa via, pois o fundo do problema está no nível da própria infraestrutura: uma arquitetura algorítmica projetada para a produção dissimulada e em massa de sujeitos influenciáveis. Sem uma instância superior capaz de regular de forma justa e legítima as forças contraditórias que permeiam a sociedade, o que temos são estados de exceção e de guerra comunicacional.
O bolsonarismo alega representar essa instância superior por meio de símbolos do “todo” tais como povo, nação, Deus, as Forças Armadas enquanto um suposto “Poder Moderador”, a mística auto-regulatória da mão invisível do mercado. Tratam-se de fantasias produzidas para gerar efeitos afetivos de adesão política junto ao senso comum, que, por definição, tende a confiar mais em indivíduos – e em planos ocultos – do que em instituições. Contudo, enquanto mistificações de contradições que são objetivas, essas fantasias jamais poderão ser uma solução real para problemas reais.
A única solução possível é trabalharmos de forma coletiva e institucional para garantir uma infraestrutura de mídia democrática e aberta que seja segura, equilibrada, justa e plural para todos os brasileiros – e não apenas para aqueles que, hoje, se acham donos do Brasil. Este é o único meio de fato democrático para impedir o aprofundamento de um estado de exceção onde plataformas e influenciadores recorrem ao discurso falso da censura para inflamar seguidores a agir a seu favor, e contra seu melhor interesse próprio.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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