Aldo Fornazieri

Doutor em Ciência Política pela USP. Foi Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), onde é professor. Autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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A democracia na encruzilhada

A extrema-direita cresce no vácuo da incapacidade dos liberais e dos partidos de centro-esquerda de resolver problemas básicos das sociedades

Trump não foi reeleito, mas ainda tem força nos EUA - Imagem: Gage Skidmore
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Todas as eleições presidenciais são históricas. No entanto, as deste ano agregam uma singularidade a mais pelas circunstâncias em que ocorrem. Os anos recentes são marcados por ameaças às democracias em vários países. O Brasil não fugiu disso: o governo Bolsonaro representa a mais grave ameaça ao Estado Democrático no período pós-ditadura.

Circula a tese de que governos de extrema-direita que governam países democráticos não se reelegem. Foi o caso de Donald Trump nos EUA e será o caso de Jair Bolsonaro no Brasil. Mas há exceções: Viktor Orbán, na Hungria, está em seu quarto mandato. A Europa está coalhada pela ascensão de partidos de extrema-direita. A Itália deverá ser governada por uma coalizão de inspiração fascista, liderada por Giorgia Meloni. Na Suécia, o partido extremista Democratas Suecos tornou-se o segundo maior e integra um governo de direita. A extrema-direita consolida-se ainda na França, Alemanha, Áustria, Espanha, Polônia, Bulgária e República Tcheca.

Os destinos da extrema-direita no Brasil dependem, em boa medida, do resultado das eleições: se Bolsonaro for derrotado no primeiro turno e eleger uma bancada pequena de deputados e senadores, ela terá dificuldade de operar na oposição. Considere-se que o Centrão não se subordinará à liderança de Bolsonaro. Nessas condições, para ter autonomia, a extrema-direita teria de formar um partido próprio ou hegemonizar um dos partidos existentes.

A extrema-direita cresce no vácuo da incapacidade dos liberais e dos partidos de centro-esquerda de resolver problemas básicos das sociedades: desemprego, estagnação da renda, pobreza e desigualdade, saúde, educação, habitação, imigração, inflação, preços da energia e dos alimentos e crise ambiental. É certo que esses problemas foram agravados pela pandemia e pela guerra, mas existiam antes das mesmas.

Os partidos liberais e de centro-esquerda, no poder, costumam se insular em relação às sociedades, constituem elites que se servem dos privilégios públicos e da corrupção e só recorrem ao povo na hora do voto. Seu maior esforço consiste em promover políticas compensatórias que criam uma falsa sensação de distributivismo que disfarça os sistemas tributários regressivos.

Esses partidos não conseguem reter a lealdade eleitoral das massas e os partidos de centro-esquerda perdem até mesmo a lealdade dos trabalhadores, que se deslocam para as legendas de extrema-direita. Com discursos nacionalistas e moralistas, com a defesa de valores conservadores e apelos a Deus e à religião, essas siglas se revestem de roupagem antissistema e prometem soluções heterodoxas que combinam ações de Estado, políticas populistas e liberdade de mercado.

Os extremistas formam contingentes para uma “guerra santa”, com o objetivo de assaltar o poder e estabelecer regimes autoritários

A extrema-direita, com fórmulas simples e vazias de conteúdo, procura viabilizar-se por uma estratégia fideísta agregando fidelidades pelo moralismo e o conservadorismo. Essas agremiações estão ainda numa fase inicial de formação e de amadurecimento ideológico. O seu agrupamento mais desenvolvido e coeso parece aninhar-se no Partido Republicano dos Estados Unidos.

Tudo indica que a estratégia fideísta visa preparar contingentes para uma futura “guerra santa”, com o objetivo de assaltar o poder e estabelecer regimes autoritários. Esse é o desdobramento natural e previsível das estratégias fideístas. Os grupos religiosos extremados – evangélicos, católicos e judeus ortodoxos – constituem contingentes, por excelência, mobilizáveis por essa extrema-direita neonazista.

O risco potencial de regimes autoritários e totalitários sempre será uma ameaça latente nas zonas sombrias da alma humana. A ideia iluminista da infinita perfectibilidade da humanidade revelou-se uma falácia. Assim, precisamos dar razão a Kant: “Não é do interior da moralidade que surge a boa Constituição do Estado. É da boa Constituição que se pode esperar a boa formação moral de um povo”.

Não basta Lula vencer as eleições e o bolsonarismo colher uma dura derrota. Da mesma forma, não basta reconstituir as instituições e as premissas democráticas arruinadas por Bolsonaro. Não é suficiente, ainda, implementar políticas compensatórias de mitigação da pobreza e da desigualdade e de recuperação do emprego e da renda para dignificar os brasileiros mais pobres. Será necessário realizar reformas estruturantes, que eliminem os mecanismos que produzem a desigualdade e a concentração de renda numa perspectiva de longo prazo.

Existem duas tarefas ainda mais difíceis. A primeira consiste em favorecer a organização e a participação política do povo como forma efetiva de conquista e garantia de direitos. A segunda, imbricada com a primeira, consiste em criar afetos, fidelidades, uma adesão ­espiritual a um projeto de país, de nação e de humanidade. As formas vazias da república e da democracia precisam ser superadas pelo calor comunitário da participação e da mobilização, orientadas por valores universalistas da construção de um destino comum para a humanidade em nosso planeta. •


*Aldo Fornazieri é professor da Escola de Sociologia e Política e autor de Liderança e Poder (Editora Contracorrente).

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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