

Opinião
Para a posteridade
O documentário Amigo Secreto deve ser visto e guardado por todos como um documento histórico da tirania da Lava Jato


Ao retratar a Lava Jato, o documentário Amigo Secreto, de Maria Augusta Ramos, assume grande importância para a história do País. Digo isso sem ser crítico de cinema e longe da pretensão de avaliar técnicas cinematográficas. Refiro-me especificamente ao registro histórico do filme. Mesmo sendo um trabalho autoral, é extremamente relevante ao expor o processo de esvaziamento paulatino e constante do sistema de direitos e garantias pelo qual o Brasil tem passado.
Inegavelmente, a resistência aos abusos da Lava Jato, empreendida por advogados e alguns jornalistas, lideranças políticas e também movimentos sociais, estabeleceu um contrapeso ao avanço autoritário e ao ataque constante à Constituição e aos direitos fundamentais. Nesse sentido, o que se vê no documentário é a extrema relevância que adquiriram o IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, e o Grupo Prerrogativas.
Walfrido Warde e Rafael Valim, diretores do IREE, uma instituição de educação e pesquisa de assuntos de interesse público, se posicionaram muito claramente, de forma crítica, em relação aos abusos no chamado combate à corrupção, inclusive com livros publicados a respeito.
Já o caso do Prerrogativas é extremamente singular. Sendo um grupo de WhatsApp, sem nenhuma forma de organização burocrática ou personalidade jurídica própria, desempenhou um papel extremamente importante naquele momento, devido à qualidade de seus membros, juristas reconhecidos nas suas diversas áreas de especialidade. Talvez como prenúncio dos novos tempos de nossa sociedade da comunicação, o grupo substituiu instituições privadas relevantíssimas da democracia em circunstâncias extremamente delicadas para a democracia e os direitos. Muitas vezes, assumiu incumbências que eram da OAB e da própria mídia.
Da OAB, no caso, porque, durante o período da Lava Jato, a Ordem se negou a realizar de forma plena a defesa das prerrogativas dos advogados, quedando-se silente em relação aos abusos da operação. A atuação da mídia foi ainda mais grave. O jornalismo brasileiro passou a confundir investigação jornalística com jornalismo de acesso. O jornalismo investigativo pressupõe mais do que ouvir a autoridade pública ou mesmo investigar o que é dito e os fatos; ele, na democracia, significa a crítica ao poder de Estado.
Denunciar as arbitrariedades da Lava Jato foi o que mais faltou à mídia corporativa, salvo exceções, como CartaCapital, El País, alguns poucos veículos institucionais, além dos progressistas na internet. A mídia como um todo acabou servindo como veículo de divulgação do ponto de vista acusatório, atuando, portanto, como uma longa mão do Estado.
Capas de revista corroboraram essa distorção, ao retratar o juiz Moro como um boxeador, praticando pugilato contra Lula em um ringue de luta. Ora, não é papel do juiz ser parte e atacar o réu, ser investigador ou operar pela máquina de polícia do Estado. Houve também indicadores mais evidentes das inconformidades, como prisões com a finalidade de obter delação. Depois, descobriram-se, inclusive, falsificação de depoimentos e grampo ao escritório de advocacia que defendia Lula.
Já em relação ao vazamento da comunicação entre os promotores, a mídia adotou uma postura de divulgação discreta. Apenas alguns veículos se predispuseram a publicar o conteúdo trazido pelo The Intercept. Diante dessas omissões, o Grupo Prerrogativas assumiu o papel de crítica ao exercício abusivo do poder de Estado, manifestando-se em defesa da democracia, dos direitos e da Constituição. Tal iniciativa lhe rendeu a “acusação” de ser um agrupamento progressista, ideologicamente posicionado, julgamento que pode ser explicado pelo incômodo que causou a muitos veículos da mídia ao lembrar-lhes do lodo ético em que se enfiaram.
É curioso observar as críticas que essa mesma mídia agora realiza ao documentário de Maria Augusta Ramos, ao cobrar que ela apresente ângulos diversos a respeito da Lava Jato, como se a aplicação de direitos e garantias constitucionais fosse uma questão de ponto de vista. Em razão dessas reflexões, é preciso receber Amigo Secreto como uma comemoração pelo reconhecimento da Lava Jato como uma medida de exceção típica dos nossos tempos. A operação foi uma ação tirânica de persecução política a um inimigo de Estado, e não um verdadeiro processo penal.
Lula foi, de fato, tratado como inimigo de Estado, sem direito a um julgamento imparcial. Um dos aspectos fundamentais do documentário é retratar a reumanização de Lula a partir da decisão do Supremo e do Comitê de Direitos Humanos da ONU. Nesse sentido, o filme, com sua crítica contundente às formas autoritárias do sistema de Justiça, é uma pérola para a democracia, a ser vista e guardada por todos como um documento histórico. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1214 DE CARTACAPITAL, EM 29 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Para a posteridade”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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