Economia

O Brasil não vai quebrar por gastar 2% do PIB a mais com a população carente

Como esperado, o ‘mercado’ reagiu com mau humor. Engana-se, contudo, quem acredita que a reação exagerada do mercado é com a hiperinflação e a carga de juros

Foto: Lula Marques
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O conceito de ideologia de Marx e Engels estabelece as formas de “socialização alienada” que impõe a grupos subalternos a defesa (inconsciente) dos interesses das classes dominantes. Neste sentido, quando os sábios das finanças alegam que “não há responsabilidade social sem responsabilidade fiscal”, já se deve concluir que os interesses da classe trabalhadora estão na causalidade inversa desta máxima.

O primeiro teste de fogo do novo presidente eleito ocorre antes mesmo de sua posse em janeiro de 2023. A equipe de transição apresentou ao Congresso, anteontem, uma minuta pedindo uma licença de gastos (waiver) para excluir da EC 95 as despesas com o Bolsa Família de 600 reais mensais para as 21 milhões de famílias incluídas programa, mais 150 reais para cada criança até seis anos (175 bilhões de reais). 

Além disso, aventa-se a possibilidade de ampliar os investimentos públicos em caso de receita extraordinária e permitir o uso de fontes próprias de financiamento para as universidades federais (23 bilhões de reais). 

O valor total destes gastos, implícito na minuta, beira os 200 bilhões – por ano, de forma permanente. A negociação com o Congresso Nacional provavelmente limitará o valor e o prazo de vigência deste waiver. Se aprovada, a PEC abrirá um espaço de 105 bilhões no orçamento de 2023, para recompor programas de governo e restaurar investimentos públicos em áreas essenciais.

Como esperado, o “mercado” reagiu com mau humor. Engana-se, contudo, quem acredita que a reação exagerada do mercado (e do editorial da FSP e d’OESP também) é com a hiperinflação e a carga de juros que acompanharia a estabilização dos preços. Quando foi noticiado, em agosto deste ano, que o desafio fiscal de 2023 somaria R$ 430 bilhões (sendo que R$ 215 bilhões eram previstos como necessidades extrateto), o ponteiro do mercado mal se mexeu. Agora, por um montante ainda menor, a Faria Lima exerce seu poder de veto ao governo eleito e inicia rodadas repetidas de “cancelamento” pela via da volatilidade de câmbio, juros e bolsa. Por que será? – diria o meme.

Em um país com tamanha injustiça tributária, os ricos sabem que a estabilização fiscal exigirá inclui-los no IRPF. Afinal, os super-ricos pagam 5% de alíquota efetiva de IR sobre sua renda e têm quase 7 em cada 10 reais da sua renda anual isenta de impostos. 

O que realmente incomoda a Faria Lima é a elevação da carga tributária do seu grupo social. A equipe de transição já anunciou a revisão das polpudas isenções fiscais que hoje somam R$ 400 bilhões. Um dos testes das nossas instituições nos próximos meses será impedir que os mercados atuem de forma antidemocrática. A discussão sobre a reforma tributária é campo fértil para isso. A reação dos mercados deseja focar as atenções na discussão do novo marco fiscal apenas no lado do gasto, como foi feito com o teto Temer em 2016.

Mesmo no lado dos gastos, o Brasil não vai quebrar por que gastará 2% do PIB a mais com a população carente em meio a uma crise social em ebulição. A PEC da transição prevê gastos de qualidade que estimulam a economia (ganhos reais ao salário mínimo), aliviam a pobreza (Bolsa Família), reforçam a cidadania (creches e farmácia popular etc.), reduzem custo Brasil (infraestrutura) e podem atrair recursos de bancos multilaterais (programas de recuperação e defesa do meio ambiente). Parafraseando Larry Summers: gastos em infraestrutura (física e humana) se pagam por si mesmos!

Já no condado paulistano, a alta finança brasileira equiparou seu conceito de responsabilidade fiscal a mera apologia ao teto de gastos. Esta quimera tecnocrática é a raiz de uma profunda dissonância cognitiva. Afinal, Paulo Guedes admitiu ter violado o teto, e o fez pelo menos uma vez… por ano, somando R$ 795 bilhões em gastos extrateto ao longo dos quatro anos. Como já se sabia, a dívida pública não explodiu e a hiperinflação não veio. 

A despeito do bilionário pacote eleitoral de Bolsonaro, o superávit primário a ser observado em 2022 foi fruto de receitas não-recorrentes, turbinadas pelo boom de commodities no setor extrativo-mineral e pela alienação acelerada de ativos da União (venda das ações da Eletrobras e distribuição de dividendos da Petrobras), poderosos ativos estatais na transição energética, o maior desafio do planeta na atualidade (a maquiagem dos resultados fiscais sairá muito caro).

O mercado até reclamou algumas vezes, mas acabou cedendo aos sentimentos tribais – Narciso só acha feio o que não é espelho -, e chega ao final do mandato aplaudindo a gambiarra fiscal-eleitoral de Guedes. Nas entrelinhas, isso comprova a vasta distância entre os limites impostos pelo teto de gastos e o descontrole inflacionário. A racionalidade política de classe agora orienta transferir o ônus da irresponsabilidade fiscal do atual governo para o governo eleito. 

Por este motivo, a negociação com o Congresso Nacional precisa ser transparente, para que se observe a estabilização das contas públicas de forma gradual e com previsibilidade, para suavizar a histeria seletiva das finanças. 

O Brasil está tomando sua rota de reconstrução. Um governo ainda não empossado não pode praticar política pública. Tudo que pode fazer é apresentar um conjunto de princípios. Cabe ao Congresso estabelecer os meios. O momento pede calma, mas sem perder a firmeza.

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