Política

A Justiça fez vista grossa para o uso da máquina pública por Bolsonaro nas eleições?

Ainda que não seja uma afronta a legislação eleitoral, as ações do governo federal geraram repercussões políticas que podem favorecer o presidente

O presidente da República, Jair Bolsonaro, acompanhado de ministros, entrega a MP do Auxílio Brasil ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Foto: Marcos Corrêa/PR
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Faltando poucos antes para o início da campanha eleitoral, o Congresso aprovou por imensa uma PEC enviada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) que ampliou uma série de benefícios sociais. 

A medida abriu uma brecha para que o governo pudesse furar o teto de gastos em até 41 bilhões de reais para pagar estes benefícios. 

Furar o teto de gastos só foi possível porque o governo federal incluiu na proposta a decretação de estado de emergência, supostamente necessárias pela alta da inflação e pelas consequências da pandemia de Covid-19. 

A manobra permitiu, sem que seja enquadrado em crime de responsabilidade fiscal, que a União gaste mais verbas do que arrecadou. Com isso, criou-se dois benefícios: um vale de R$ 1 mil por mês para motoristas de caminhão autônomos e um auxílio a motoristas de táxi. Juntos os dois devem consumir R$ 7,4 bilhões.

O texto sancionado também determinou o aumento do Auxílio Brasil de 400 para 600 reais mensais e o fim da fila de espera para a concessão do benefício. O reajuste no programa tem como previsão orçamentária 26 bilhões de reais. 

No entanto, apesar da real urgência em ajudar os mais vulneráveis, os benefícios têm prazo de validade – 31 de dezembro, junto com o fim do primeiro mandato do atual presidente. 

Por conta disso, abriu-se um debate de a PEC seria ou não uma manobra eleitoral usada por Bolsonaro para buscar apoio dos brasileiros mais pobres, que, conforme pesquisas eleitorais, tinham mais resistência ao ex-capitão. 

Após o resultado do primeiro turno, que teve o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na frente na disputa de votos dos brasileiros, o governo passou a correr atrás dos eleitores que faltavam para superar o petista. 

Foi anunciado, então, o ingresso de novas 500 famílias no Auxílio Brasil e a antecipação de parcelas do benefício e do vale-gás. As medidas beneficiam, estrategicamente, os públicos na mira do bolsonarista candidato à reeleição. 

Além disso, também se antecipou uma parcela extra do Auxílio Taxista, empréstimo consignado para beneficiários do programa de transferência de renda e crédito da Caixa destinado a mulheres empreendedoras. 

O conjunto de ações, tomado na fase decisiva da disputa eleitoral, levantou novamente o questionamento sobre a prática de abuso de poder político e a violação da legislação eleitoral. 

A lei brasileira proíbe os governos de criar benefícios ou distribuir ajudas que já não estejam previstas e em andamento no início do ano eleitoral. 

O procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, Lucas Furtado, está convicto que a liberação dos consignados configura abuso de poder exercido por Bolsonaro.

No entanto, nenhuma medida foi tomada pelo Poder Judiciário para barrar as benesses, que poderiam trazer riscos para a disputa eleitoral.

Teria sido o Poder Judiciário leniente com as estratégias de ganho de votos do ex-capitão?

O que dizem os especialistas

Para especialistas do Direito, a manobra adotada pelo governo federal não é de todo irregular. 

“Por ser uma PEC, ela acaba não ferindo a lei eleitoral. Está dentro da legislação, vez que tem mais força que a lei eleitoral”, afirma o advogado Vitor Goulart Nery, membro da Abradep, consultor político e advogado eleitoralista. Nery ressalta, todavia, que a tática de Bolsonaro não saiu como o planejado. “A ideia do governo era ter uma ampla vantagem nas intenções de voto e o 1º turno das eleições presidenciais mostraram que a estratégia falhou, vez que o Lula acabou liderando a votação

Apesar disso, a PEC – aprovada entre o primeiro e o segundo turno – faz uma clara distinção entre quem tem direito aos benefícios e essa é considerada uma escolha política do presidente. 

Para o advogado Filipe Vieira, atuante em direito público e mestre em direito político e econômico, o aumento exponencial dos benefícios aponta uma evidente vantagem aos beneficiários. 

“Os empréstimos consignados, a regulamentação de uso de recursos futuros de fundo de garantia para financiamento de imóveis, a criação de programas de refinanciamento de dívida com bancos públicos, tudo evidentemente a criar um cenário altamente favorável ao direcionamento do voto ao realizador da benfeitoria – sempre, invariavelmente, quem está ocupando o Poder”, afirmou o especialista em direito público. 

Ainda que não seja uma afronta a legislação eleitoral, as ações do governo federal geraram repercussões políticas que podem favorecer os projetos de poder bolsonarista. 

“A meu ver, as vantagens pontuais para bases específicas podem e devem ser entendidas como vantagens eleitorais e tentativas de compra de voto”, completa Nery. 

Os especialistas consideram, no entanto, ser improvável que se reconheça a inconstitucionalidade das medidas direcionadas aos cidadãos mais necessitados. 

“O Poder Judiciário tem uma tradição ainda muito forte, embora por vezes seja mitigada, de não interferir, com suas decisões, em políticas públicas e em decisões de governo que não apresentem aspectos de ilegalidade ou inconstitucionalidade”, pontua Vieira. “Talvez isso explique a falta de tentativas de derrubada dessas alterações legislativas e desses atos  pelo Poder Judiciário – que, é bom lembrar, apenas pode agir por provocação de algum interessado, nunca por iniciativa própria.” 

Mesmo concordando na não leniência do Judiciário, Nery recorda que, em outros momentos do País, o Poder adotou uma postura de não confronto com a gestão federal. 

O especialista ainda pontua que as recentes decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitor, Alexandre de Moraes representam a resistência na tentativa de tumulto eleitoral e projeto de poder de Bolsonaro. 

“Eu prefiro usar linha de resistência porque, na verdade o Judiciário tenta combater a falsa narrativa, o que é imprescindível para a democracia – se um lado acredita em números de desmatamento fantasiosos, enfrentar um problema tão grave se torna ainda mais difícil, concluiu o especialista em direito eleitoral. “Não à toa plantaram negacionismo cientifico e colhemos a volta da pólio, da paralisia infantil. A lei da física é implacável na política pública, toda ação gera uma reação.” 

Isto não significa, contudo, que não possa se falar em punição sobre possível abuso do poder publico e econômico. 

“A má utilização dos recursos públicos de maneira intencional e em benefício próprio, a depender da sua configuração, pode ensejar a incidência da Lei de Improbidade Administrativa”, explica Filipe Vieira. “Especialmente sobre o gestor público que se colocar como responsável pela implementação e execução desses benefícios, ainda que tenham sido aprovados pelo Legislativo, assim como pode ensejar eventual arguição de descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, e pode, ainda, atrair a atuação preventiva e repressiva do TCU.”

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