Opinião

No Brasil de Bolsonaro vivemos uma nova colonialidade

Por isso, não haverá comemoração dos 200 anos da Independência, pois a mesma deixou de existir, desde o golpe de estado de 2016

O presidente Jair Bolsonaro. Foto: Sergio Lima/AFP
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“Sonhos são cartas da alma para nós. Pena que elas não são lidas.” – O Talmud.

Nós seres humanos somos dotados de tantas possibilidades que elas chegam a nos causar dificuldade de escolha, de rumos e caminhos.

Ciente disso, os exploradores levam os explorados ao paroxismo, pois o ser humano encerra universos que não podem ser aprisionados, mesmo sob os grilhões mais pesados.

Até a mais abjeta pobreza não é capaz de erradicar a espiritualidade humana, riqueza infinita, inestimável e inextirpável.

Notamos isso no simples gesto de darmos algo a um pedinte na rua e ouvirmos em retribuição: “Deus te abençoe, Ele te dê em dobro.”

Mas, em geral, como somos faltosos de agradecimentos os menos vulneráveis socioeconomicamente!

No entanto, quantos sinais recebemos durante o dia e à noite!

Com quantas linguagens somos confrontados! Dos animais, das plantas e assim por diante.

Quem já teve o privilégio de servir de intérprete sabe a emoção de colocar pessoas, ideias e experiências em contato.

Surgem, então, sentimentos de identificação, de partilha de lutas e de esperanças, muitas vezes entre pessoas de culturas as mais diferentes, realidades antípodas, mas com laços indeléveis de humanidade comum.

Em “O sistema e o antisistema” (editora Autêntica) Ailton Krenak, Helena Silvestre e Boaventura de Sousa Santos brindam-nos com uma belíssima experiência, fazendo confluir mundos diversos, mas imbuídos de tamanha humanidade!

Helena recorda que Davi Kopenawa, em “A queda do céu” diz: “Os brancos não conseguem se expandir e se elevar porque querem ignorar a morte […] Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito mas só sonham consigo mesmos.”

Helena complementa esse pensamento de Kopenawa com a seguinte reflexão: “Aceitar a morte, a nossa própria e também a morte de tudo o que vive, diz respeito a como vivemos. Vivemos iludidos, explorando a natureza como se ela nunca fosse morrer? É preciso viver em coerência com a consciência da morte, consciência que cultiva milenarmente a floresta amazônica para que ela não se acabe. Nós precisamos aprender a sonhar com algo mais do que nós mesmos, sonhar com mundos possíveis que não sejam feitos à imagem e semelhança deste mundo capitalista – ainda que colorido por direitos decretados por um estado acima de nós. Precisamos aprender a sonhar sonhos que nos elevem a outras realidades possíveis, completamente diferentes desta e estruturadas sobre outros termos, termos inconciliáveis com a propriedade privada da terra, inconciliáveis com o desenvolvimento, inconciliáveis com o mercado, inconciliáveis com a exploração, a espoliação e a opressão de quem quer que seja, humano ou não humano.”

A autora também faz reflexão muito pertinente sobre o ressurgimento da extrema-direita em âmbito internacional, relacionando o fenômeno com o fim da União Soviética: “Talvez a extrema-direita cresça justamente graças à desistência da ameaça comunista, que deixou de convocar o fim do mundo capitalista, que deixou de se fazer ameaça.”

De fato, parece haver uma relação direta entre a existência da URSS e as concessões que o capital precisou fazer, principalmente na Europa, as quais redundaram em condições dignas de trabalho para as gerações do pós-guerra, mas que se esgotaram com o final da experiência pós-1917.

Com efeito, lá como cá, esta será a primeira geração que estará pior do que a dos pais, o que ocorre no Brasil e em outros países explorados pelo capital internacional e pelos governos de que são parasitas.

Assim, Helena Silvestre conclui o ensaio com esta bela reflexão: “Saber de onde viemos, recuperar a história de nossos ancestrais e suas diásporas até o lugar onde nos encontramos colabora com sonhos que vão além de nós mesmos, sonhos de uma vida melhor, de uma vida digna, feliz.”

Ailton Krenak, por sua vez, aprofunda aquela reflexão ao afirmar: “Na América Latina, Estado nacional é o Estado colonial. Não existe um Estado que não seja colonial. Eu acompanho o debate sobre o novo constitucionalismo na América Latina com boa vontade. De vez em quando, experimento uma certa euforia quando vejo pensamentos andinos, pensamentos de povos que estão no Equador, na Colômbia, na Bolívia, mesmo no Chile, se insurgindo contra uma ordem colonial que estabelece que o Estado nacional tem esse poder de decidir sobre como nós vamos estabelecer as relações dentro dos contextos de países e nações latino-americanas, determinados por uma lógica que inspira o constitucionalismo colonial. Então, tudo o que vem desse grande vocalizador que é o Estado colonial, ele ignora e nega a originalidade, a pluralidade e a capacidade de invenção desses povos que não foram considerados integrantes do concerto civilizatório.”

Que agradável quando as coisas são chamadas pelo nome que têm: no Brasil sob o genocida (das 107 propriedades da familícia, quase metade foi comprada com dinheiro vivo) estamos vivendo atualmente uma nova colonialidade.

Por isso, não haverá comemoração dos 200 anos da Independência, pois a mesma deixou de existir, desde o golpe de estado de 2016, a favor do qual, aliás, Simone Tebet votou. Importante sublinhar, pois perdoar não implica esquecer.

Que o 2 de outubro nos restitua o 7 de setembro! E para sempre!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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