Muito se tem discutido sobre o papel do judiciário no “Estado Democrático de Direito”. Para além das construções edificadoras ocidentais, que atribuem ao poder judiciário papel de destaque e relevo, como se fosse o modo de existência que expressasse o “estado da arte” da sociedade, existem amarrações e entrelaces que precisam ser desamarrados e desentrelaçados: o papel dos juízes e do Ministério Público certamente é um desses.
Há algum tempo – talvez desde o Tribunal de Nuremberg, em época de falência das promessas da modernidade e do fim do humanismo – vê-se, com inocência (salvo críticas localizadas mais contundentes), a expansão vertiginosa da atuação do poder judiciário na materialização do direito.
Nos tempos de pós-positivismos, pouco restou da função de “bocas da lei”, presente na exegese francesa, em que os códigos eram vistos como a “positivação da razão” do Estado burguês, podendo se falar, atualmente, que aos juízes cabe ser a própria lei.
“O juiz é a lei, a lei é o juiz”
Opera-se a mutação do magistrado em um tipo de entidade sobre-humana, erguida, contraditoriamente, no povo que falta, pois, se a soberania é do povo, o sobre-humano se ergue na “insuficiência do humano”, constituindo-se em um tipo de representação paralela e parasitária “emancipatória” da própria soberania.
Diante desse cenário, parece emergir o seguinte enunciado, quase soprado ao pé do ouvido: “onde falta a política, faz-se presente o direito”, embrionário do chamado “ativismo judicial”, que comporta, aliás, duas definições distintas, que expressam a atuação do judiciário na contemporaneidade. Apesar da semelhança no nome, os termos são notadamente dicotômicos.
Para afunilar a terminologia empregada, sob pena de colocar em equívoco o leitor, faz-se necessário o recorte: um deles é a juridicização, que é a operação de reconstrução do sentido de determinado fato social em fato jurídico; o outro é a juridicialização, que se liga ao protagonismo do direito na determinação de sentido de dado fato social, em prejuízo dos sentidos políticos, econômicos, morais, dentre outros.[1]
O protagonismo do poder judiciário – ativismo social – trata-se de forma de juridicialização, talvez, a sua forma mais profunda ou letal, porque a partir dele se inaugura o regime político dos togados, o direito como nova totalidade, em que as decisões políticas são tomadas não mais nas disputas entre as falas políticas nas urnas: o regime deliberativo de entrelaçamentos, arena de conflitos de interesses ligados ao poder, campo das curvas e dos afetos colocados em disputa, tais como a sedução, a coesão, o ocultamento, a inteligência, a sagacidade e a sensibilidade.
Contraditoriamente, é no reinado do direito que vivemos o tempo em que o próprio direito é “bruxificado” ou extirpado, como se fosse espírito indesejado, pois, para manter Lula fora das urnas, o STF deu o seu próprio corpo em sacrifício: eliminou a construção civilizatória do direito para atender ao “anseio popular” (criando o povo como uma totalidade unitária, arbitrária e provisória, um bloco monolítico).
Ao invés de se ouvir o direito como o regime de sentido contrafático, são “as vozes das ruas” que devem ser ouvidas – para falar como certo ministro – justamente aquelas vozes que são caladas porque a soberania do povo é sempre aquela do “povo que não é gente”. É o tempo, isso é certo, da própria falência do direito, o que gera tantas e tantas outras ruínas…
O câncer assimétrico no Brasil – para além de Kant e de seus muitos herdeiros – é o famigerado uso da “ponderação de direitos” a la terra brasilis, método largamente utilizado, porque favorece o poder do juiz e o cometimento de arbitrariedades – dota mesmo o juiz de superpoderes, ou supra-humanidade, fora do controle ou da responsabilização democrática, favorecendo o ativismo, que se trata, enfim, de uma forma de messianismo.
Se Todorov estava certo ao dizer que democracia ocidental foi imposta pelas bombas, traduzindo-se em uma forma de messianismo,[2] que nega a própria institucionalidade da democracia, podemos falar que, da figura messiânica construída com o juiz Sérgio Moro, muitos são os seus Messias, erguidos justamente da falta de “messianidade”.
Há muito o problema já não é mais de inconstitucionalidade (afinal, a Constituição está em queda[3]), mas de institucionalidade: se as prisões de Lula e de Temer são legais ou não, constitucionais ou não, nada disso mais parece importar. No tempo em que o direito é posto em sacrifício, o jogo de forças é outro!
Os agentes do judiciário foram mesmo transformados em atores políticos, inaugurando aquilo que Lynch[4] chamou de “revolução judiciarista”: movimento pseudoneutro de juízes de diferentes instâncias, motivados e inspirados pelas “luzes” da Constituição, que passam a condenar políticos, rever benesses das elites e superar o “atraso” nacional.
Paralelamente à representação eletiva dos tradicionais e barrocos agentes políticos, como os senadores, deputados, vereadores, prefeitos, governadores e presidentes, aparece a ideia da representação “funcionalista” da sociedade, exercida pelo Judiciário e pelo Ministério Público.
Agora, não é mais o tempo do ativismo social dos juízes, mas de verdadeiro alpinismo político, à sombra do povo e de qualquer possibilidade de democracia (mesmo que mínima, mesmo que insuficiente…).[5]
A prisão de Michel Temer, em figura absolutamente absurda de “preventiva retroativa”, além de mais uma demonstração de poder da Lava Jato à margem do direito – já colocado tantas vezes em evidência com a condução do caso de Luiz Inácio Lula da Silva – reafirma o caráter que já lhe parecia patológico.
Como queda de braços de meninos mimados, trata-se, é certo, de resposta que foi para as recentes perdas da Lava Jato no STF, como a da criação da fundação anticorrupção (entenda-se: pró-Lava Jato e pró-Bolsonaro), a que Alexandre de Moraes determinou o bloqueio de valores já depositados pela Petrobras na conta ligada a 13ª Vara Federal de Curitiba, e, mais notadamente, as revesses de competência dos crimes comuns – como corrupção e lavagem de dinheiro – que, conforme determinado pelo STF, quando relacionados a delitos eleitorais, como o caixa 2, serão julgados pela Justiça Eleitoral e não mais pela Justiça Federal, objeto de julgamento no inquérito 4435[6] – coisa que os párocos da Lava Jato menos queriam.
Contudo, a institucionalidade da Lava Jato ainda parece ser tamanha que o próprio desembargador, ao relaxar liminarmente a prisão ilegal de Michel Temer, teve que se justificar, como se fosse questão infantil e binária de ser contra ou ser a favor:
“Reafirmo, por fim, que sou a favor da operação chamada ‘Lava-Jato’, Reafirmo também que as investigações, as decisões, enfim tudo que, não só a ela concerne mas a todas sem exceção, devem observar as garantias constitucionais, e as leis, sob pena de não serem legitimadas.”
Já que o poder da Lava Jato parece se dar à queda de braços – projeto de poder que, a fórceps, para falar como o ministro Gilmar Mendes, quer impor na marra argumentos e enunciações – os ecos do direito vão, labirínticos, a cada dia, perdendo o sentido entre os corredores tortos do garantismo, sob pena não serem mais ouvidos.
Foto: Tomaz Silva/EBC
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