Letícia Cesarino

Antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina. Autora de 'O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital'

Opinião

Da brincadeira às ameaças: o risco que o Brasil corre nas próximas semanas

Como ficou especialmente claro durante a pandemia, Bolsonaro atua sempre em dois níveis, da política e da meta-política, num espectro amplo de possibilidades entre moderação e radicalização

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) junto à esposa Michelle e o pastor Silas Malafaia, no Reino Unido. Foto: Chip Somodevilla/POOL/AFP
Apoie Siga-nos no

À medida que se avizinha a possibilidade de uma vitória de Lula no primeiro turno, precisamos estar mais atentos à inédita ameaça colocada pela meta-política bolsonarista.

Para quem está imerso nessas redes, o mundo continua virado do avesso: estão certos de que quem vencerá no primeiro turno é Bolsonaro. Na vida real, contudo, sabemos que o mais provável é que o contrário ocorra. Qual é, portanto, o risco real de escalada da violência, nas linhas do que ocorreu no Capitólio estadunidense?

A resposta a essa pergunta precisa de um tipo de previsibilidade que existe no modo como o bolsonarismo funciona. O bolsonarismo não é uma força política comum, que segue os valores e procedimentos das “quatro linhas” da democracia representativa. É, antes de tudo, a expressão de ressentimentos e medos, de uma vontade de se ver “livre” de amarras consideradas ilegítimas.

Embora a ameaça de ruptura num nível global (um golpe de estado, uma guerra civil) seja improvável, ela é sempre uma possibilidade no nível das relações intersubjetivas.

Prever onde e quando ocorrerá a passagem da ameaça ao ato é impossível, dada a própria natureza afetiva dessa identidade (meta)política. Nesta semana, presenciei a seguinte cena. Um carro de passeio decorado com adesivos e bandeiras de Lula foi ultrapassado de forma agressiva (e desnecessária) por uma caminhonete de luxo – o que, aliás, já aconteceu comigo inúmeras vezes quando usei um adesivo “Fora Bolsonaro” no pára-choque.. Enquanto a caminhonete de luxo fazia a ultrapassagem, a mulher sentada no banco do carona fez a arminha com as mãos e, rindo, apontou para o carro petista, simulando metralhá-lo.

A “brincadeira” aparente inócua esconde um risco real, que se ancora em processos nem sempre visíveis. Como desenvolvo num livro a ser lançado em breve, o tipo de política manifestada pelo bolsonarismo e outras forças de extrema-direita opera próximo ao nível meta-comunicativo primário que Gregory Bateson desenvolveu em A Theory of Play and Fantasy (Uma Teoria da Brincadeira/Jogo e Fantasia). Trata-se de um nível que temos em comum com outros animais sociais, como cães ou primatas, e pelo qual fronteiras de grupo são testadas e traçadas por meio de performances de ameaça, jogo/brincadeira, comportamento histriônico, autocomiseração, entre outros.

Extrapolando a partir da teoria, podemos dizer que os indivíduos humanos podem “regredir” a esse plano comunicativo mais fundamental quando não confiam mais nas instituições historicamente instituídas pra organizar as fronteiras e identidades coletivas – por exemplo, numa democracia. O ponto importante é que, para Bateson, os comportamentos são, em última instância, o mesmo. Entretanto, no Ocidente tendemos a separar fácil demais brincadeira de ameaça, fato de ficção. Já para outras culturas, como a iatmul, estudada por Bateson, essa é uma linha tênue com a qual se tem bem mais cuidado, sendo essas contradições e os riscos nelas implicados geridas, normalmente, por meio de rituais.

Assim, para aqueles brasileiros que deixaram de confiar na legitimidade do sistema eleitoral, a passagem da ameaça ao ato, da brincadeira às vias de fato, é uma questão de simples contingência. A depender de como o encontro com o “inimigo” se desenrola, a arminha com a mão pode facilmente se transformar numa arma real, caso uma esteja disponível no porta-luvas do carro. Nos públicos bolsonaristas, a cama já está feita para esse tipo de plot twist: a deslegitimação das instituições do Estado democrático de direito avança a passos largos, os indivíduos estão se armando, o mundo invertido onde Bolsonaro está à frente nas pesquisas com chances de vitória no primeiro turno já é uma realidade.

Como ficou especialmente claro durante a pandemia, o presidente atua sempre nos dois níveis, da política e da meta-política, num espectro amplo de possibilidades entre moderação e radicalização. Assim, ele mantém margem suficiente para maximizar o bônus e minimizar o ônus, ajustando seu comportamento conforme o feedback que vai recebendo das redes sociais, das pesquisas eleitorais, da imprensa, do mercado financeiro.

Assim, não sabemos exatamente o que irá acontecer entre o primeiro turno eleitoral e a posse do novo presidente em primeiro de janeiro. Mas o que podemos ter certeza é que, na eventualidade de alguma irrupção de violência antes, durante, ou depois das eleições, o presidente jamais, em hipótese alguma, assumirá pessoalmente a responsabilidade, mas delegará a culpa – e a punição – a seus seguidores.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo