

Opinião
Criança não é mãe. Homem não é Deus
Meninas e pessoas com deficiência, que muitas vezes demoram meses para descobrir que estão grávidas, serão as mais penalizadas pelo PL defendido pela bancada evangélica


“Se algum homem for beijá-la, será o segundo, eu já beijei”. Há cerca de dois meses, essas declarações saíram da boca do pastor Lucinho Barreto, viralizou e deixou a internet chocada. O pastor, sem medo algum, diz que elogiava a filha, então menor de idade, com expressões com grande apelo sexual. Pastor da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte – a mesma de André Valadão, sobre o qual pairam acusações de homofobia –, Lucinho expressa o suco do que há de pior no patriarcado cristão.
Cristãos de modo geral, acreditam que todas as coisas são para Deus, que vêm de Deus e por que Ele, tudo acontece. Pois bem, na cosmogonia cristã, Deus é macho, sendo assim os “machos” também acham que todas as coisas são para eles, por eles e deles. O sentimento de posse que homens têm por mulheres explica o número alto de homens que abusam das próprias filhas, que batem em suas esposas, mães, irmãs e demais as mulheres que eles tenham perto de si.
Esse sentimento de posse apresentado por Lucinho, que diz beijar a filha e o filho como modo de educação sexual (inclusive ele disse que beija o filho, para que ele não queira beijar outro homem), expõe o que as feministas chamam de objetificação das mulheres: elas viram posses, têm donos e esses donos sentem que podem submetê-las a qualquer situação que queiram, mesmo que degradantes e vexatórias.
Não me refiro apenas a abusos sexuais, mas também a abusos psicológicos, patrimoniais, morais e muitos outros que resultam em mulheres feridas, que veem na submissão a única maneira de se sentirem amadas e valorizadas. Pais, pastores e líderes religiosos que acreditam ter o direito de definir o que as mulheres devem ser, fazer e sentir, endossam uma cultura que vai contra os direitos das mulheres. Consentimento não está no vocabulário desta gente.
Não são raros os casos de estupros maritais de mulheres que são obrigadas a se relacionarem sexualmente com seus maridos, mesmo contra suas vontades. Chama a atenção o fato de que, ao se defender das críticas, o pastor Lucinho afirmou que o evento em que fez essas declarações era destinado a mil homens e que ele estava orientando-os sobre paternidade. Absurdo! Como se pode dizer algo assim em um espaço com mais de mil homens?
Isso só mostra que os direitos das mulheres estão mais frágeis do que nunca. Que os fundamentalistas religiosos, totalmente antidireitos, se sentem livres para dizerem os maiores absurdos possíveis, sem medo de serem responsabilizados, ou de perderem suas posições de destaque, sobretudo no contexto evangélico.
É necessário defender que a Constituição garante a liberdade religiosa; no entanto, isso não significa que o espaço religioso conceda imunidade a qualquer indivíduo. Nos espaços religiosos, deve-se respeitar o princípio da dignidade humana, especialmente ao usar palavras que possam, de qualquer forma, sugerir que uma relação incestuosa entre pai e filha seja benéfica para uma família. A liberdade de culto nunca deve ser interpretada como a liberdade de dizer o que se quer, violando os direitos de outras pessoas.
Isso não está desvinculado de um espectro político que se beneficia de narrativas religiosas fundamentalistas. O mesmo pastor Lucinho, que afirma ter sido mal interpretado e que sua fala foi tirada de contexto, é uma figura central no bolsonarismo. Esses mesmos homens, que veem suas esposas e filhas como propriedades, apoiam absurdos como o PL 1904/24, proposto por Sóstenes Cavalcante (PL/RJ).
O PL quer equiparar a interrupção de gestações a partir de 22 semanas a homicídio, mesmo em casos permitidos por lei. Em outras palavras, um abusador, se preso, pode ser condenado a até dez anos de detenção, enquanto um médico que interrompa a gestação de uma menina abusada, após 22 semanas, poderia enfrentar até 20 anos de prisão.
Essa busca pelo controle sobre os corpos das mulherese meninas demonstra que essas narrativas moralistas não se importam com a integridade de quem engravida. O que importa é determinar o que será feito com esse corpo. Não podemos minimizar isso: seja um pai que beija uma filha à força, seja um discurso que defende que meninas devam ser mães, é a cultura do estupro enraizada em nossa sociedade que surge a cada dia mais forte
A bancada evangélica, em peso, é favorável a este PL. Enquanto dizem defender as crianças, com esse tipo de regulação punitiva do aborto, fecham os olhos para pastores que incentivam pais a beijarem suas filhas a força.
Esses homens, que há milhares de anos constroem a figura de um deus macho, todo-poderoso, se consideram tão poderosos quanto esse deus bélico e vingativo. Nas redes sociais, proliferam vídeos de homens que afirmam e reafirmam que as mulheres devem ser submissas à vontade integral de seus maridos, especialmente às vontades sexuais. Afirmam também que as mulheres têm um potencial demoníaco e são manipuladoras.
O tempo todo, tentam controlar os corpos das mulheres. A manifestação do pastor Lucinho transmite uma mensagem de controle sobre a filha, seu desejo e sua posse. Essa mesma cultura é responsável por fazer do Brasil o quinto país do mundo em feminicídios. Homens que não aceitam as decisões de suas esposas, não aceitam términos e acreditam na máxima: “ou é minha, ou não será de ninguém”.
Por fim, vemos o quanto as infâncias estão desprotegidas. Meninas de 10, 11 anos, pessoas com deficiência intelectual, entre outras em situação de vulnerabilidade, muitas vezes demoram cinco ou seis meses para descobrir que estão grávidas. São elas que serão penalizadas por este PL. Elas são vitimizadas por discursos de paternidade tóxica. No limite, as mulheres são tratadas como seres humanos de segunda categoria, que devem padecer dos males impostos pelo patriarcado.
Para ajudar a barrar esse absurdo do PL 1904/24, contribua para o abaixo-assinado Criança Não é Mãe, em: https://criancanaoemae.org/
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.