Opinião

Brasil ainda se defronta com uma cultura patrimonialista de difícil superação

De fato, por se tratar precisamente de cultura, perpassa a direita e a esquerda

Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Apoie Siga-nos no

“Eu aceito a solidão bem, mas não por muito tempo.”
Vinicius de Moraes

Na semana passada, foram vários os eventos promissores do ponto de vista da justiça e da paz internacionais. A solidão da bipolaridade vai dando lugar à multiplicidade, também é diversidade, alteridade.

No Iêmen, houve importante troca de prisioneiros de guerra. Em número superior a novecentos detentos, alguns estavam há mais de oito anos em cativeiro. A guerra civil causou mais de 150 mil óbitos e milhões de deslocados internos.

O congelamento do imperialismo dos Estados Unidos da América no Oriente Médio tem trazido notícias alvissareiras à martirizada região.

A nota negativa é o conflito aberto no Sudão, entre a milícia e o exército sudanês, que já causou a morte de 58 pessoas, além de três servidores humanitários do Programa Mundial de Alimentos, das Nações Unidas.

A diplomacia russa não tem sido indiferente a esses progressos, estando também por trás da normalização das relações entre a Turquia e a Síria.

A visita do chanceler russo, Serguey Lavrov, ao Brasil, nesta semana, não destoa do protagonismo russo em estimular conexões multipolares.

Sempre no Oriente Médio, a declaração conjunta entre a Arábia Saudita e a Síria, sobre o fim do isolamento de Damasco, demonstra igualmente força da diplomacia russa, reaproximando sauditas e iranianos – estes, os fiadores da paz na Síria.

Nesse sentido, vale notar que a delegação síria foi recebida em Riad na presença de delegação iraniana, algo inédito e impensável há poucos dias.

Com efeito, a pacificação na região se faz cada dia mais necessária: no Mediterrâneo, o trimestre passado foi o mais mortífero em seis anos. Quatrocentas e quarenta e uma pessoas perderam a vida, na tentativa frustrada de buscar refúgio na Europa.

Até no Velho Continente o degelo da Guerra Fria se faz sentir: o presidente da França, Emmanuel Macron, em visita aos Países Baixos, reiterou a importância de a Europa contar com visão própria, soberana, distinta daquela dos EUA, principalmente no que tange ao relacionamento com a China e à questão de Taiwan, que coloca em xeque a unidade territorial chinesa.

Vale notar que não se trata de um líder de esquerda; ao contrário, cada vez mais de direita, na medida em que, internamente, alia-se ao grande capital, reconcentrando renda e oprimindo os trabalhadores ao aumentar a idade de aposentadoria francesa de 62 para 64 anos.

Convém notar que o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, coerentemente, manifestou concordância com Macron, aduzindo que vários líderes europeus também desejam maior autonomia europeia com relação aos EUA.

A Alemanha, país em parte ainda ocupado militar e mentalmente, reagiu negativamente, como esperado.

Em contraponto aos progressos na região, o governo de extrema-direita direita de Israel impôs medidas draconianas aos cristãos ortodoxos em Jerusalém: impediu a saída de Gaza aos que se dirigiam à Cidade Santa para comemorar a Páscoa Ortodoxa; estabeleceu que os que quisessem participar das cerimônias deveriam apresentar convites; e limitou o número de participantes a 1/5 do ano passado, entre outras medidas absurdamente restritivas.

Em resposta, as igrejas cristãs (incluídas a católica de rito latino, a grega-ortodoxa e a armeniana) integrantes do Conselho Ecumênico de Igrejas informaram que não acatarão as referidas disposições do estado hebreu, por serem abusivas.

Trata-se de declaração ecumênica inédita, tanto por reunir católicos e ortodoxos de várias denominações contra a opressão aos ortodoxos no momento mais importante para a liturgia cristã, a Páscoa, quanto pela ousadia em afirmarem conjunta e solidariamente que não se dobrariam às regras injustas e belicosas.

Sim, algo muda – e muito rapidamente – na política e na cultura do Oriente Médio.

No Extremo-Oriente, porém, ainda presenciamos chacinas contra a população civil, cristã e muçulmana: em Mianmar, os militares golpistas atacaram com aviação a própria população, matando mais de cem pessoas, massacre silente por parte da imprensa internacional e local.

Por aqui, no Brasil, ainda nos defrontamos com cultura patrimonialista, de difícil superação. De fato, por se tratar precisamente de cultura, perpassa a direita e a esquerda.

Pela direita, vimos um ex-presidente, genocida, que roubou até os móveis do Palácio. Mas a esquerda também patina na visão patrimonialista, que assimila poder a propriedade.

Ao assemelhá-los, presta grande desserviço à participação, que resta deslegitimada, por antítese. Com efeito, o que foi feito do conselho de política externa? Não deve ser pública? Em caso positivo, não requer aconselhamento?

A antítese dessa visão proprietária, triunfalista, seria a visão gramsciana. De fato, Gramsci teorizou: “[…] na luta deve-se sempre prever a derrota, a preparação de vários sucessores… É um elemento tão importante quanto tudo o que se faz para vencer.”

A citação foi retirada de Gramsci – uma nova biografia, de Angelo d’Orsi, da editora Expressão Popular.

Entender o caráter limitado de nossa cultura patrimonialista permite compreender melhor o 8 de Janeiro e o ataque que os fascistas fizeram precisa e simbolicamente ao patrimônio, que sintetiza o Estado na visão da extrema-direita, que publicamente o ataca, mas privadamente dele se apropria para o enriquecimento próprio.

Proféticas, visionárias e perenes as interpretações de Gramsci, a um século do 8 de Janeiro de 2023, como Angelo d’Orsi explicita, a propósito da tomada de poder pelo fascio, citando também Gramsci:

“Diante da ofensiva fascista – ou seja, homens armados, enquadrados militarmente, protegidos por instituições liberais -, os líderes socialistas responderam de modo ineficaz, confiando justamente naqueles aparatos estatais que eram os protetores das esquadras de ‘camisas negras’. Mas, acima de tudo: ‘Os socialistas jamais enfrentaram a questão da possibilidade de um golpe de Estado e os meios a implementar para defender-se e passar à ofensiva.’ Enquanto isso, Gramsci notava com lúcida previsão: ‘O golpe de Estado dos fascistas – ou seja, do Estado maior, dos latifundiários, dos banqueiros – é o espectro ameaçador que, desde o início, pesa sobre a atual legislatura.”

O ‘lawfare‘ não foi exitoso aqui por acaso: são os direitos o antídoto ao patrimonialismo, por isso os atacaram tão brutalmente. Portanto, sem construirmos outra cultura, de direitos, de participação, dificilmente teremos uma real e sólida democracia.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo