Carlos Bocuhy

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Presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental, o Proam.

Opinião

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As vulnerabilidades do Brasil estão reveladas na tragédia do litoral paulista e dos yanomamis

O País precisa elencar prioridades e voltar-se, de forma emergencial, ao longo caminho da boa governança ambiental

Foto: NELSON ALMEIDA / AFP
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A devastação climática que atingiu o litoral norte do estado de São Paulo no último fim de semana e o genocídio dos yanomamis deixam lições importantes. Ensinam que o respeito ao ordenamento territorial está entre as maiores prioridades para a segurança dos brasileiros.

A normativa ambiental dos países mais desenvolvidos vem, há muito, assumindo a missão de apontar rumos para o desenvolvimento sustentável. Busca a manutenção e a promoção de ambientes seguros, com ordenamento territorial adequado, eliminando vulnerabilidades, livres de poluição para água, ar e solo, na garantia da proteção da vida dos seres humanos e da biodiversidade planetária.

Assim, a governança ambiental do Brasil depende, como qualquer outra no mundo, de administrar seu território e seu patrimônio ambiental com capacidade e eficácia, de forma a garantir a manutenção das condições vitais para um futuro seguro e saudável.

A eficácia da governança precisa ser mensurada. Sua essência multidisciplinar demanda múltiplos indicadores. Este processo deve contar com metodologia adequada, acuidade científica e participação social isenta de conflitos de interesses. É preciso obter respostas sobre a eficácia das políticas públicas ambientais e o estado da arte da proteção da vida. É preciso diagnosticar desconformidades e identificar o estágio de desenvolvimento do País.

As Nações Unidas vêm produzindo material orientador para o desenvolvimento das nações, como, por exemplo, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), com horizonte de atingimento para 2030. Entre os objetivos encontram-se boa saúde e bem-estar (ODS 3), água limpa e saneamento (ODS 6), indústria, inovação e infraestrutura (ODS 9), cidades e comunidades sustentáveis (ODS 11) e ação contra a mudança global do clima (ODS 13).

O objetivo ODS 11 aponta caminhos para evitar eventos como a tragédia no Litoral Norte paulista, incluindo a eliminação de desconformidades na ocupação das áreas de risco, a tomada de medidas responsáveis relacionadas à relocação de populações, intervenções para contenção de encostas e sistemas de escoamento de águas pluviais, procedimentos eficientes de comunicação diante de episódios potencialmente críticos, com estabelecimento de alarmes, rotas de fuga, abrigos, com preparação e organização das comunidades envolvidas.

Não é mais possível considerar que as obras e as concepções baseadas na série histórica de pluviometria possam representar segurança. Cada vez tem-se uma intempestividade maior, como ocorreu no último fim de semana.

A avaliação de 2022 sobre o desenvolvimento do Brasil traz expectativas sombrias, que apontam evidente estágio de insustentabilidade. O resultado do VI Relatório Luz da Sociedade Civil da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável repete, exaustivamente, que cada uma das metas para atingimento dos objetivos é “insuficiente”, apresenta “retrocesso” ou está “ameaçada”.

Diz o relatório: “As 168 metas originalmente aplicáveis ao país – inclusive as sete que a partir de 2021 passaram a ser consideradas no Painel ODS Brasil como ‘não aplicáveis’, apenas uma (a 15.8), teve progresso satisfatório. Onze (6,54%) permaneceram ou entraram em estagnação, 14 (8,33%) estão ameaçadas, 24 estão em progresso insuficiente (14,28%) e 110 (65,47%) estão em retrocesso. Sobre oito metas (4,76%) não há dados”.

A meta 15.8, citada como exceção positiva, não se refere a resultados mais concretos, mas apenas à “formação da Rede de Alerta e Detecção Precoce de Espécies Exóticas Invasoras”.

Os indicadores apontam a piora da governança ambiental do Brasil. Em comparação com o V Relatório Luz, “as metas em retrocesso aumentaram de 92 para 110 e as com progresso insuficiente passaram de 13 para 24”. Este será o grande desafio para o governo Lula da Silva.

O caso gritante dos yanomamis representa perda de controle estatal envolvendo insuficiências, retrocessos e ameaças à vida e ao ambiente. O caos se instalou como resultante da dinâmica econômica nociva da lavra ambiciosa e desregrada dentro de um território que deveria ser protegido. O episódio dantesco de desnutrição, envenenamento e morte da etnia indígena Yanomami mostra a reedição, em pleno século XXI, dos efeitos da “febre do ouro”, que assolou tantas etnias ao redor do mundo, causando genocídios.

É preciso considerar que não se trata de estabelecer regramento ou normatização para a proteção da vida e do ambiente, que não existia nos séculos anteriores. Trata-se da capacidade brasileira para implementar mecanismos de proteção já instituídos. Portanto, está em xeque a eficácia da governança que dispõe de plenos mecanismos legais para o exercício de suas funções.

A reação ao caos tem sido forte e surpreendente. O lançamento de um artefato militar explosivo para destruir uma pista de pouso clandestina, em pleno território indígena e no meio da Floresta Amazônica, agrega mais contradição. Mesmo considerando que o atual governo aplica tratamento de choque de forma emergencial para impor ordem ao caos provocado pela incúria do governo anterior, o bombardeio em meio à Floresta Amazônica é questionável devido à evidente vulnerabilidade ambiental do local.

Pelo conjunto da obra, que inclui o aumento de 331% das mortes de yanomamis por desnutrição na gestão de Jair Bolsonaro, acrescida das tragédias climáticas que assolam as populações vulneráveis que vem sendo vitimadas em áreas de risco, talvez a frase mais apropriada seja “o horror, o horror”, conforme pronunciou o coronel Walter Kurtz, ao final do filme Apocalipse Now.

Obviamente o atual estado do desenvolvimento sustentável no Brasil não deve ser julgado só por estes exemplos atrozes. Certamente há boas ações em gestação. Mas na prática estamos ainda no purgatório. Há muito para fazer e refletir.

É preciso plasmar o desenvolvimento sustentável em nossa realidade. A começar por ampla compreensão conceitual sobre o que é “desenvolvimento”, que não pode ser confundido com mero “crescimento”; a compreensão do que é “sustentabilidade”, muito mais relacionada, em essência, à sobrevivência intergeracional do que aos efeitos cosméticos do “greenwashing” do mercado, como os princípios ESG (Environmental, Social and Governance) praticados por alguns representantes do setor da mineração aurífera envolvidos nesse episódio, assim como os responsáveis pela especulação imobiliária predatória e excludente que lança os menos favorecidos para as áreas de risco.

Tendo em vista a forte ascensão dos caminhos de uma economia predatória que impulsiona contínuos impactos negativos sobre a realidade biofísica brasileira, é essencial que transformações positivas ocorram no setor produtivo; que os governos não se fechem em seus limitados planos pontuais e demagógicos de pequeno poder e que estruturem políticas públicas necessárias e saudáveis que não financiem, com dinheiro público de agentes estatais como o BNDES, a insustentabilidade ambiental.

Além disso, é importante que estabeleçam mecanismos de monitoramento para o fluxo dos agentes financeiros privados e que a sociedade civil compreenda que participação social não se limita à obrigatória transparência dos atos governamentais, mas sim participação plena em processos decisórios. O Judiciário, por sua vez, precisa atuar em respeito aos bens ambientais indisponíveis. E os poderes legislativos não podem continuar mergulhados em profundos conflitos de interesse que aviltem valores intrínsecos da democracia e da proteção ambiental. E, como se revela na tragédia do litoral norte de São Paulo, as diferentes esferas federal, estaduais e municipais não devem exercer incompetência concorrente.

Sobretudo, é preciso agir para equacionar o que o descontrole dos mais simples dos elementos naturais como água e clima estão nos ensinando: o efeito apocalíptico dos desastres naturais, que assolaram em menos de um ano os estados de Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo.

O Brasil tem que elencar prioridades e voltar-se, de forma emergencial, ao longo caminho da boa governança ambiental.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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