Paulo Nogueira Batista Jr.

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Economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Opinião

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Arcabouço, não calabouço fiscal

O desafio é dar alguma previsibilidade à política fiscal e ganhar confiança, sem perder a flexibilidade

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente Lula. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
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Foi adiada para abril, para depois da viagem do presidente Lula à China, a decisão sobre o arcabouço fiscal que substituirá, por lei complementar, o teto constitucional de gastos. A decisão de adiar a proposta do governo me parece correta. Por que tomar de afogadilho, a portas fechadas, decisão de natureza estratégica, que afetará a política fiscal ao longo dos próximos anos?

Não tenho conhecimento da alternativa ou alternativas elaboradas no Ministério da Fazenda, pois tudo foi conduzido até agora sob segredo. Mas a matéria em si mesma não requer sigilo. Melhor seria que se inaugurasse um debate aberto sobre o assunto, antes de o presidente Lula encaminhar a proposta de lei complementar ao Congresso.

Estou entre aqueles que preferem dispositivos flexíveis, que não engessem a política econômica. O futuro é sempre incerto e fixar regras rígidas acaba não sendo recomendável na prática. Melhor deixar margem para adaptações e revisões. A confiança pode ser criada e fortalecida ao longo do tempo, com a execução responsável das políticas públicas.

O papel de uma regra flexível é ajudar na criação de confiança, sem impedir, entretanto, que a política fiscal desempenhe seu papel como instrumento central da política econômica. Arcabouço, não calabouço fiscal.

No caso do Brasil, a flexibilidade é particularmente importante, uma vez que é difícil imaginar um cenário de recuperação da economia e distribuição de renda que não passe por uma política fiscal ativa, que inclua ampliação do investimento público e das transferências e outros gastos sociais.

A minha preferência, assim como a de muitos outros economistas, no Brasil e no exterior, é por uma regra flexível, simples e que não seja pró-cíclica, como são alguns tipos de âncoras. Em outros termos, é melhor adotar regra ou arcabouço fiscal facilmente inteligível que dê margem à adoção de políticas anticíclicas sempre que necessário, permitindo que a política fiscal seja mais restritiva em períodos de aquecimento excessivo da economia e mais expansiva em períodos de recessão ou estagnação.

Uma possível regra fiscal poderia tomar o seguinte formato. Seriam definidas, com certa antecedência, metas ­anuais para o resultado primário do governo na forma de uma banda, com distância ampla entre piso e teto. A lei preveria que, em épocas de recessão ou crescimento lento, o resultado ficaria próximo do piso; em épocas de crescimento elevado, próximo do teto. A regra não seria, assim, pró-cíclica.

A simplicidade da regra é uma vantagem. Um arcabouço complexo, com muitos dispositivos, cláusulas de escape e gatilhos, dificultaria a compreensão da proposta e o acompanhamento da sua execução. Seria, também, mais fácil desfigurá-lo durante a tramitação no Congresso, pois a complexidade abriria a porteira para todo tipo de ideia extravagante.

O que aconteceria se a regra aqui proposta fosse descumprida? Também nesse ponto seria preferível adotar procedimentos simples. Em caso de resultado fora da banda estabelecida, a Fazenda enviaria documento detalhado ao Congresso, justificando o desvio, a exemplo do que faz o Banco Central, em carta à Fazenda, quando a inflação escapa da banda no regime de metas para a inflação. O ministro da Fazenda, assim como deveria fazer o presidente do Banco Central, compareceria trimestralmente ao Congresso para dar explicações e responder a questionamentos sobre a condução da política e o cumprimento da meta.

O arcabouço proposto seria flexível demais? Não creio. Afinal, pergunto, por que o regime fiscal teria de ser mais rígido do que o monetário? A política fiscal deve, em princípio, ter o mesmo tratamento que a monetária.

O desafio é conferir alguma previsibilidade à política fiscal e ganhar confiança, sem perder o essencial – a flexibilidade para acionar programas sociais, os investimentos públicos e a reforma tributária. A economia brasileira experimenta uma estagnação que já dura dez anos. O Brasil continua a ser um dos países mais desiguais do mundo.

Alguém imagina que será possível redistribuir renda sem lançar mão de políticas de gasto e tributárias? Alguém imagina que a retomada virá da restauração da confiança na política econômica e dos efeitos dessa restauração sobre o consumo e o investimento do setor privado?

A liderança tem que partir do Estado, único agente capaz de lançar e coordenar o esforço de retomada econômica e distribuição de renda. A política fiscal ativa constitui uma alavanca essencial que, coadjuvada pela mobilização dos bancos públicos e pela revisão da política monetária, poderá realizar os objetivos tantas vezes adiados de tirar a economia do marasmo e criar um país mais justo. •

Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Arcabouço, não calabouço fiscal’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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