Diversidade

Abram as portas da igreja que a literatura vai entrar: lembranças do ‘Fliparacatu’

Deveria haver uma lei que obrigasse cada cidade, cada município deste País a realizar, a apoiar um festival literário. Literatura é vida e um direito inegociável

Foto: Festival Literário de Paracatu/Divulgação
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O Brasil é o maior país católico do mundo. Quantas igrejas existem aqui? Em Salvador, são 365, o que, inclusive, virou motivo de piada entre os baianos: uma para cada dia do ano.

E se cada igreja brasileira abrisse suas portas para escritores, escritoras, para a literatura? É certo que teríamos um levante, uma verdadeira revolução, cujas armas principais seriam os livros. Foi o que aconteceu entre os dias 23 e 27 de agosto no Festival Literário de Paracatu (Fliparacatu), ocorrido na cidade do interior de Minas Gerais.

Ao longo de cinco dias, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e o Centro Pastoral São Benedito receberam expoentes da literatura brasileira, como Itamar Vieira Junior, Eliana Alves Cruz, Jeferson Tenório, Márcia Kambeba, Jamil Chade, Juliana Monteiro, Calila das Mercês, Renato Noguera e tantos outros. Do “estrangeiro”, como diria minha mãe, o Flipacaratu contou com o aclamado escritor moçambicano Mia Couto, um dos homenageados da festa. 

Entre as mulheres, Conceição Evaristo brilhou como a estrela primeira. Paracatu viu a força da escritora nascida em Belo Horizonte, que antes de se dedicar à escrita se sustentava como trabalhadora doméstica, assim como milhares de mulheres negras do país. Sob a proteção de São Benedito, ao dividir uma mesa com a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), e com a jornalista Miriam Leitão, ela lembrou justamente que, mesmo com os avanços recentes, a população negra ainda tem sido excluída, deixada para trás. A esse respeito, Conceição disse: “A gente quer mais. A gente tem direito a mais. E ainda está faltando muito”.  Nesse momento, o Centro Pastoral, que estava lotado, com presença marcante de mulheres pretas, veio abaixo. Era o “furacão” Conceição Evaristo pedindo passagem.

Como testemunha do evento presidido pelo jornalista e escritor Afonso Borges, que marca a retomada do Ministério da Cultura e do respeito aos artistas e às artes, eu me emocionei diversas vezes. Lembrando de uma expressão usada pela minha prima Silvinha, um meteoro caiu nos meus olhos quando adentrei a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e me deparei com dezenas de adolescentes à espera do bate-papo entre mim e o escritor cearense Tino Freitas. Naquele momento, a igreja não era mais espaço da culpa, do medo, da remissão dos pecados, mas, sim, um lugar de trocas, de contar histórias, de encantamento. Diante dos olhares atentos e curiosos daquela moçada, fiquei comovida ao pensar que, para muitos, era a primeira oportunidade de ver escritores e escritoras de perto.

Fui tomada por um misto de emoção e indignação ao constatar o quanto a educação nega o acesso ao conhecimento, à literatura, para crianças e jovens deste país. Na primeira escola em que trabalhei, os livros ficavam trancados “para que os alunos não colocassem as mãos”. Era a ordem da diretora. Em outras, a biblioteca transfigurava-se em sala do castigo, da punição, para onde iam aqueles e aquelas que não faziam o dever de casa. Ou, então, o local em que meninos e meninas com deficiência ficavam confinados, apartados do convívio com os demais. O Fliparacatu subverteu essas práticas injustas, autoritárias e perversas. Livros, escritores e literatura: tudo ao alcance de turistas e da população paracatuense.

Nessa festa mágica, destaco também a presença da escritora Paloma Jorge Amado, uma figura encantadora, doce como uma cocada baiana. Bastava que ela começasse a contar suas histórias e as de seus pais para que um monte de gente se aglomerasse a seu redor. Cada vez que ela pronunciava a palavra “papai”, eu me sentia bem perto de Jorge Amado, autor que li muito durante minha adolescência, com grande participação na minha formação humana e política. 

Mas tudo o que é bom duro pouco. Sinto uma ponta de dor ao dizer isso. O festival acabou, o trabalho, os compromissos da vida adulta estavam a minha espera na capital mineira, onde moro. No caminho até o aeroporto, tive o privilégio de contar com a companhia do Fabão, morador de Paracatu, motorista do evento e torcedor do glorioso Clube Atlético Mineiro, assim como eu. Fabão era puro entusiasmo com tudo o que aconteceu nos dias em que a literatura se tornou o assunto principal da cidade. Ao nos despedirmos, ele disse com a voz firme: “Ano que vem, eu vou atrás do prefeito para que o Fliparacatu aconteça de novo. Vou mesmo. Pode confiar!”. Palavra do Fabão tem poder. Em 2024, estaremos lá novamente. 

Voltei para casa com o coração grato, feliz, realizado, e com a cabeça cheia de sonhos. Deveria haver uma lei, um decreto que obrigasse cada cidade, cada município deste país a realizar, a apoiar uma festa, um festival literário. Literatura é vida. Literatura é um direito. Um direito inegociável. 

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