Nathalie Beghin

Economista e coordenadora da assessoria política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)

Livi Gerbase

Assessora política do Inesc

Opinião

A relação da volta da fome com a política monetária

A depender de como atua, o Banco Central impacta nossas vidas

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
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No mês passado, o Banco Central (BC) aumentou mais uma vez a Selic, a taxa básica de juros, que foi para 13,25% ao ano. O que isso tem a ver com a fome? Tem tudo a ver, pois a depender de como atua, o Banco Central impacta nossas vidas.

As decisões do Banco Central são tomadas longe da população e, com a aprovação da autonomia do órgão no ano passado, fortaleceu-se a ideia de que a política monetária deve ser afastada do debate público ou de qualquer instância democrática, devido ao seu caráter estritamente técnico. Nada mais equivocado – e ao mesmo tempo revelador – dos interesses que atuam no BC.

O que é a política monetária?

A política monetária, operada pelo Banco Central, é voltada para a administração da moeda e das taxas de juros, e o principal objetivo dela é o controle da inflação. O principal instrumento desta política é a taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação e Custódia).

Essa taxa é a base para remuneração dos títulos públicos e, consequentemente, influencia as outras taxas de juros do mercado, como aquelas praticadas em empréstimos de bancos comerciais para pessoas e empresas.

A relação entre juros e inflação passa pelo consumo, investimento e câmbio. Por exemplo, quando o Banco Central anuncia que irá elevar a Selic, a tendência é que todas as taxas de juros subam. Juros altos afetam negativamente a capacidade de consumo das pessoas, pois o crédito fica mais caro.

Também resulta na diminuição dos investimentos produtivos das empresas, uma vez que os empréstimos também encarecem e fica mais vantajoso aplicar no mercado financeiro. A queda do consumo e dos investimentos provoca desemprego, que retroalimenta o desaquecimento da economia.

Neste sentido, o desaquecimento da economia é uma escolha deliberada do Banco Central, cujo objetivo é diminuir a inflação. A lógica seria assim: com uma economia contraída em decorrência da queda do consumo e dos investimentos, haveria uma queda da inflação. Porém, não é isso que acontece no Brasil dos dias de hoje.

Combatendo a inflação com as ferramentas erradas

A leitura de que aumentar os juros vai resolver a inflação não considera a conjuntura na qual nos inserimos. Nos últimos anos, o país mergulhou numa crise econômica que foi agravada pelas consequências da pandemia da Covid-19 e do conflito na Ucrânia. Na década de 2010, chamada por muitos de “perdida”, o PIB per capita caiu em média 0,6% ao ano, um dos piores resultados dos últimos cem anos. O quadro se agudizou recentemente com a recessão decorrente do Sars-Cov-2, levando a um expressivo contingente de trabalhadores 30 milhões de trabalhadores subutilizados, de acordo com os dados mais recentes do IBGE.

Mesmo com este ambiente recessivo, a inflação se alastrou nos últimos meses, sobretudo, em decorrência da alta de preços de produtos cujos valores são definidos no mercado internacional, como é o caso de commodities agrícolas e energéticas. Esta inflação “importada” também pode atingir produtos industriais, como vimos durante a pandemia, quando diversas cadeias globais foram paralisadas pela falta de insumos encarecendo os produtos pela insuficiência de oferta. Ou, ainda, pelo conflito na Ucrânia que resultou no aumento de preços de vários bens essenciais ao Brasil como os fertilizantes.

Vê-se, pois, que a atual alta de preços no país pouco tem a ver com uma pressão da demanda, pois a economia está totalmente desaquecida. Portanto, o remédio proposto pelo Banco Central, de aumento dos juros para provocar um choque recessivo que diminua a demanda por bens e serviços, não só não irá resolver o problema da inflação, como causará estragos à população, especialmente a empobrecida, pois a alta da Selic já resultou no aumento generalizado das taxas de juros praticadas no mercado de crédito.

A expectativa do IPEA é que essa política monetária contracionista seja um fator determinante para um crescimento baixo do PIB em 2022.

Mas se o aumento expressivo dos juros não ataca as causas da inflação e tem como consequência uma recessão econômica, para quem ele serve? A alta dos juros serve principalmente para quem possui títulos do governo e quer ganhar com juros mais altos, sem ter que realizar investimentos produtivos. Esse processo resulta em uma enorme transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos, pois são as elites e as instituições financeiras as maiores detentoras de títulos de dívida pública.

O deliberado afastamento do Banco Central da sociedade significa uma subordinação ao mercado financeiro. Analisando as presidências do Banco Central, observamos que seis dos últimos sete presidentes estiveram no mercado financeiro anteriormente ou trabalharam para ele após sair do BC. Algumas destas instituições financeiras estão entre os maiores detentores dos títulos da dívida pública brasileira, como é o caso do Santander e do Itaú, evidenciando ainda mais o conflito de interesses.

Banco Central e a fome

A contínua elevação da Selic desde finais de 2020 contribuiu para deteriorar o quadro de emprego e renda, aumentando a fome, que atingiu 33 milhões de pessoas em 2022. Considerando um cenário de desemprego e queda da renda, a situação ficou pior para os empobrecidos, porque caiu seu poder de compra em função do aumento da inflação, especialmente da inflação de alimentos. Mas medidas para controlar os preços dos alimentos e outros preços estratégicos, como estoques de alimentos, foram abandonadas pelo governo, e o Banco Central continua apostando na elevação de juros para conter os preços.

Em outras palavras, um aumento da taxa de juros numa economia deprimida, dentro de um cenário de forte inflação, acaba agravando as desigualdades. Logo, a atual política monetária praticada pelo BC viola direitos. Vê-se, pois, o enorme impacto que uma decisão do Banco Central pode provocar na vida das pessoas.

Outra política monetária é possível

O Guia Ilustrado de Inflação, Política Monetária e Direitos Humanos, lançado recentemente pelo Inesc, tem como objetivo trazer o assunto de volta à esfera pública e mostrar que todas as pessoas têm direito de entender e opinar sobre a política monetária, pois ela tem impactos na garantia de direitos humanos. Diante da importância dessa política, precisamos disputá-la para que de fato ela contribua para a inclusão econômica e social.

Para isso, o Guia propõe quatro caminhos: (i) evitar ajustes monetários recessivos e aumentos exorbitantes de juros; (ii) promover um sistema de crédito mais justo com acesso igualitário; (iii) combater à inflação a partir de suas causas e com coordenação de políticas para além da política monetária, protegendo os preços que mais impactam os empobrecidos e as políticas públicas de garantia de direitos; e (iv) implementar uma política monetária mais transparente e democrática.

Ainda precisamos avançar muito em prol de uma política monetária mais inclusiva e justa, mas uma coisa é certa: não podemos deixar este debate acontecer apenas entre o Banco Central e o setor financeiro.

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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