Rita von Hunty

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Opinião

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A potência dos afetos

Além de denunciar o pesadelo, precisamos encontrar formas de comunicar o sonho, para que, em união, possamos construí-lo

Rita Von Hunty (Foto: Reprodução/Redes sociais)
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São Paulo acaba de ser palco para um grande espetáculo de performance: o Teatro da PombaGira encenou Máquina, um trabalho excepcional para pensarmos o início do segundo semestre de 2022 – ano eleitoral no Brasil da distopia bolsonarista e da ameaça anunciada de golpe eleitoral.

O motor da encenação é o argumento poético da “desmortificação”, escrito durante o giro mortal da pandemia de ­Covid-19 que, no Brasil, matou quase 700 mil pessoas. Os autores, Marcelo D’Avilla e Marcelo Denny, refletem sobre formas de resistência, insurgência e produção de vida no cenário sombrio e absurdo que atravessamos. Denny faleceu durante a pandemia, e Máquina também presta tributo ao artista.

A encenação é realizada de forma coletiva por todos os corpos em cena. Não há hierarquias. O protagonismo é dado pela diferença daquilo que se pretende hegemônico, normativo e incontestável. Pessoas pretas, travestis, bichas e uma mulher no terceiro trimestre de gestação constroem um apanhado de cenas que comunica a ideia de que somente os corpos vivos poderão desmortificar nosso cenário de luto e normalização dos absurdos.

Quem esteve nas encenações confirma que a proposta cênica produz resultados sensíveis, seja no desejo radical por algo avesso à política de morte produzida pelos seis anos Temer-Bolsonaro, seja na percepção de que a coletividade nos reabastece de força para lutar.

É importante ressaltar que Máquina não contou com nenhum aporte financeiro, editais ou financiamentos – o triste e desolador cenário da cultura em um país no qual o presidente tenta, a todo custo, vetar o projeto de lei Paulo Gustavo, que visa destinar 3,8 bilhões de reais ao setor.

A importância de Máquina e de uma série de outras empreitadas artísticas com sentidos semelhantes reside, dentre outras coisas, na comunicação de afetos potentes.

Em Diálogos, Gilles Deleuze, um dos mais importantes intelectuais do século XX, diz: “Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes. A tristeza, os afetos tristes são todos aqueles que diminuem nossa potência de agir. Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. (…) Os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar”.

O segundo semestre de 2022 acaba de começar, e nós, no Brasil, já fomos expostos ao terror e à angústia que se anunciam no porvir.

No período de pouco mais de um mês, vimos a Polícia Rodoviária de Sergipe improvisar uma câmara de gás para torturar e matar um homem preto e pobre que dirigia uma moto sem capacete e a polícia do Rio de Janeiro produzir, na Vila Cruzeiro, a segunda maior chacina da história do Estado.

Vimos também uma série de violências e discursos de desumanização produzidos contra os corpos grávidos. Em Santa Catarina, uma juíza submeteu uma criança de 11 anos a uma série de perguntas constrangedoras e violentas, visando dissuadi-la de seu direito de interromper uma gravidez fruto de estupro.

A atriz Klara Castanho foi alvo de ataques contra sua reputação e teve o sigilo de seus processos violado após revelar que havia encaminhado uma criança fruto de violência sexual para adoção. Uma estudante foi estuprada na UnB, enquanto saía do restaurante universitário. E, ainda mais chocante, as enfermeiras de um hospital público no Rio flagraram ­Giovanni Quintella que, na função de médico anestesista, sedava pacientes e as estuprava durante a cesariana.

Como esperado, as esferas federais do Poder Executivo não se posicionaram com a devida gravidade sobre o assunto, chegando ao absurdo de, no mais recente caso de assassinato movido por ódio político, em que um policial penal invadiu a festa de aniversário e matou um militante do PT, no Paraná, o vice-presidente, Hamilton Mourão, referir-se ao caso como “não preocupante” e tentar normalizar o absurdo como “um evento que ocorre todos os fins de semana em nossas cidades”.

Gerar e gerir o horror têm sido as principais técnicas bolsonaristas para desarticular e enfraquecer a nossa resistência. Conhecemos bem a estafa, o sofrimento psíquico, o medo, a miséria, a fome e o desmonte que se tornaram cenários desta tragédia política.

Agora, mais que nunca, é preciso que, para além de denunciar o pesadelo, encontremos formas de comunicar o sonho, para que, em união, possamos construí-lo. Que estes dias possam escancarar que quem se mantém ao lado do projeto bolsonarista não pode ser pensado como nada além de agente do fascismo e não nos falte força para construirmos o seu oposto. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A potência dos afetos”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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