Liszt Vieira

Professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond)

Opinião

A encruzilhada: presidencialismo de coalizão ou parlamentarismo de fato?

Se nada ocorrer, estaremos diante de um regime híbrido, não previsto na Constituição. Um monstrengo que poderia ser chamado de ‘parlamentarismo de coalizão’

Arthur Lira e Lula. Foto: Ricardo Stuckert
Apoie Siga-nos no

Durante a campanha eleitoral, Lula foi advertido sobre a necessidade de conclamar os eleitores a votarem  em candidatos a deputado e senador comprometidos com a chapa Lula/Alckmin. Isso acabou não sendo feito, talvez pelas dificuldades da campanha presidencial. Há, porém, quem avalie um excesso de confiança de Lula, com base em seu governo anterior. Algo do tipo “Eleito Presidente, eu resolvo com o Congresso”.

Depois de 4 anos da ultradireita no poder, a frente ampla, reunindo a esquerda, o centro, e a direita não fascista, ganhou, por margem apertada, a eleição presidencial, mas a direita ganhou o Legislativo, onde tem maioria folgada. Não se trata bem de uma armadilha. Trata-se, como veremos adiante, de uma encruzilhada. Estamos diante de um conflito institucional entre o Executivo, orientado grosso modo por valores de centro-esquerda, e um Legislativo comprometido com valores conservadores da direita e, principalmente, com os interesses econômicos e financeiros do mercado.

A decisão do STF na próxima terça feira 6 poderá impor mais um limite na busca de poder do deputado Lira

Essa queda de braço, que apenas começa, tende a continuar e pode mesmo chegar a inviabilizar o sucesso do governo Lula. Ou, pelo menos, a atrapalhar muito. Após a derrota com a aprovação do Marco Temporal, veja-se o alto custo dos recursos para emendas parlamentares que o governo liberou para vencer na Câmara a votação da MP da reestruturação dos ministérios: R$1,7 bilhão para emendas parlamentares! E o governo já havia feito concessões, pois o texto enfraqueceu as pastas de Meio Ambiente e Povos Indígenas. No Senado, a MP foi aprovada por 51 votos a favor e 19 contra.

 Mas esse confronto executivo x legislativo poderá ser, se não resolvido, pelo menos atenuado com a intervenção de um outro Poder, o Judiciário. Não seria a primeira vez que o STF atua para limitar o poder excessivo que vem sendo usufruído pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.

Lembremos que o STF decidiu “cortar as asas” do deputado Lira quando o ministro Gilmar Mendes determinou em 19/12/2022 que os recursos destinados ao pagamento de programas sociais de combate à pobreza e à extrema pobreza, como o Bolsa Família, poderiam ficar fora do limite do teto de gastos. Em outro julgamento, ainda em dezembro do ano passado, o STF decidiu sobre a constitucionalidade do chamado orçamento secreto. Por 6 votos a 5, o Supremo considerou inconstitucionais as emendas de Relator, as chamadas RP9. As duas decisões retiraram poder do presidente da Câmara que usou o discricionário orçamento secreto para arregimentar votos.

Lembrando o chulo ditado popular, “de cabeça de juiz e de bunda de neném, ninguém sabe o que vem”, três processos envolvendo o deputado Lira no âmbito da Lava Jato foram suspensos em março passado por decisão do ministro Gilmar Mendes. A partir daí, o deputado Lira deu a volta por cima e hoje mostra força em seu projeto de governar o país como primeiro ministro de fato, apesar de não contar com o apoio incondicional do presidente do Senado.

Por enquanto, porém, a sociedade civil progressista parece inebriada com a vitória eleitoral de Lula e ainda não deu sinais de mobilização

Agora, porém, foi rapidamente desengavetado um processo por corrupção contra Lira que estava dormindo em berço esplêndido na gaveta de algum ministro. No caso, o ministro Dias Toffoli havia pedido vista e, de repente, devolveu o processo para julgamento pelo Plenário, previsto em princípio para a próxima terça-feira, 6 de junho. Em caso de condenação, se realmente vier a ocorrer, o deputado Arthur Lira não poderia ser presidente da Câmara, segundo uma interpretação, ou não poderia apenas fazer parte da linha sucessória da Presidência, segundo outros analistas. O STF vai bater o martelo.

Enquanto isso não ocorre, se é que realmente ocorrerá, Lira posa de primeiro ministro, querendo mandar nos assuntos internos, e deixando ao presidente Lula principalmente a condução da política internacional do país. Está, na prática, querendo exercer esse papel inexistente na Constituição, mas com apoio na realidade política que tem permitido ao Congresso, não é de hoje, ter mais poder que o Executivo em diversas questões de governabilidade.

A decisão do STF na próxima terça feira 6, se não houver pedido de vista para adiar sine die o julgamento, poderá impor mais um limite na busca de poder do deputado Lira, pois, como dissemos, não estaria excluída a possibilidade de o Supremo impedir Lira de ser o presidente da Câmara, se condenado for no processo de corrupção em que figura como réu. Ao mesmo tempo, o governo ataca por outro lado e a Polícia Federal cumpriu mandado de busca em casa de um próximo auxiliar de Lira, Luciano Cavalcante, por suspeita de desvios de verbas para compra de kits de robótica superfaturados, gerando prejuízo de 8,1 milhões. Foi encontrado um cofre lotado de dinheiro vivo nessa operação em reduto do deputado Lira.

O resultado de tudo isso é imprevisível. Se nada ocorrer, estaremos diante de um regime híbrido, não previsto na Constituição, misturando elementos do presidencialismo e do parlamentarismo. Um monstrengo que poderia ser chamado de “Parlamentarismo de Coalizão”. Na prática, teríamos um primeiro ministro de fato tratando de muitos assuntos internos e um Presidente da República cuidando principalmente das relações internacionais.

Um outro cenário possível pode ser deduzido das palavras do deputado Artur Lira após a votação da MP dos Ministérios: “O Governo vai ter que andar com suas pernas” e “não haverá nenhum tipo de sacrifício” por parte da Câmara. Como o Governo é minoria na Câmara, teria de abrir cargos estratégicos no Executivo para o Centrão, num deslocamento à direita que poderia comprometer as promessas do candidato Lula. Fortalece essa hipótese o fato de que, na maioria dos Ministérios, os cargos de segundo escalão permanecem sem nomeação, muitos ainda ocupados por bolsonaristas.

Diante dessa encruzilhada, o presidente Lula, como Santo Guerreiro, não poderia sozinho derrotar o Dragão da Maldade, simbolizado pelo presidente da Câmara. Talvez a salvação venha de uma aliança tácita, não escrita, que já era visível no horizonte: a aliança entre o Governo e o STF para barrar o abuso de poder do presidente da Câmara dos Deputados. Mas uma decisão favorável do STF não seria uma intervenção “salvadora”. O deputado Lira tem o apoio do poder econômico, ou seja, do mercado financeiro e da bancada BBB – Boi, Bala e Bíblia – e, se por acaso for afastado, em pouco tempo seria substituído por outro.

Vale aqui um rápido parênteses sobre um tema específico: a relação política entre evangélicos e a violência da direita. A aproximação de religião com violência não é novidade na História, sabemos todos, mas os pentecostais, que muito têm crescido no Brasil, se identificam com o Antigo Testamento, com o Deus vingativo e violento, com a frase bíblica o “Deus Senhor dos Exércitos”. Isso os leva a uma posição de extrema direita, embora no passado tenham variado de apoio político conforme a conjuntura: a maioria deles apoiou o golpe em 64 e, posteriormente, apoiou Lula em 2002. Em 2018 e 2022, cerraram fileiras em apoio a Bolsonaro. Já os cristãos, em grande número, abandonaram a mensagem pacifista de Jesus que morreu torturado na cruz e passaram a apoiar um político que defende tortura, armas, guerra civil. Isso é apenas um exemplo sobre a relação entre religião e política. Os partidos políticos enfrentariam essas e outras questões, sejam morais, sociais ou econômicas, se fizessem trabalho de base e não se limitassem às atividades parlamentares, como vem ocorrendo.

Assim, com um Congresso dominado pela direita, o governo continuaria de mãos amarradas e, mais cedo ou mais tarde, teria de mobilizar a população para manifestações de rua ou inventar novos mecanismos de pressão popular. Isso seria a nossa “floresta que se move”, lembrando a profecia da derrota de Macbeth, na famosa peça de Shakespeare. Por enquanto, porém, a sociedade civil progressista parece inebriada com a vitória eleitoral de Lula e ainda não deu sinais de mobilização além de mensagens nas redes sociais ou de artigos na imprensa alternativa.

É bom lembrar que, daqui pra frente, o tempo não deve correr a nosso favor e o tempo, em política, costuma ser um fator importante.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo