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Sem paz entre Rússia e Ucrânia, países da Otan promovem corrida armamentista

Apesar dos discursos de paz, Estados Unidos e Europa alavancam gastos com setores militares, ampliam o poderio bélico da Ucrânia e lideram comércio global de armas

Foto: Sergei Supinsky/ AFP Via Getty Images
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Na última segunda-feira 20, enquanto Xi Jinping fazia a sua primeira visita a Vladimir Putin desde que a guerra entre Rússia e Ucrânia começou, os membros da União Europeia decidiam, na Bélgica, desbloquear 2 bilhões de euros para o fornecimento munição à Ucrânia pelos próximos 12 meses. A decisão europeia é mais um passo, entre os países do Ocidente – sobretudo os Estados Unidos –, na corrida armamentista que o conjunto de nações vem fazendo por conta do conflito

Na terça-feira 21, o chefe da OTAN, o norueguês Jens Stoltenberg, alertou a China sobre o fornecimento de armas à Rússia. Ele disse que vê “sinais que este assunto está sendo considerado em Pequim”. Para ele, a China não deve fornecer ajuda letal à Rússia “para apoiar uma guerra ilegal”. Não há ainda evidências, até o momento, de que haja mesmo um acordo para fornecimento.

Embora um acordo bélico entre China e Rússia pertença – ao menos, por enquanto – ao campo das suposições, as estatísticas mostram que, apesar da campanha pela paz global, os aliados da Ucrânia preparam suas estruturas militares para a escalada do conflito.

As tentativas de resolução diplomática do conflito, afinal, não vêm sendo bem-sucedidas – e, em um cenário de agravamento, a guerra pode se alastrar para além do território ucraniano. 

CartaCapital apresenta um balanço deste fenômeno – cujo maior beneficiado, mais uma vez, são os Estados Unidos.

O aumento das importações e o domínio comercial dos EUA

Em março, o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (na sigla em inglês, Sipri) divulgou um relatório sobre o comércio global de armas do último quadriênio (2018-2022). 

O instituto chegou à conclusão que o início da guerra entre Rússia e Ucrânia ampliou de maneira expressiva a importação de armas por países europeus, em um comércio no qual os Estados Unidos lideram com folga. Atualmente, os norte-americanos são responsáveis por 40% das vendas de todas as armas do mundo (a Rússia, segunda colocada, possui 16% do mercado). Nesse mercado, a Europa experimentou um aumento de 47% nas importações de armas. Se forem considerados todos os membros da Otan – são 30 países, no total –, o aumento foi de 65%.

Vale destacar que os dados mais recentes indicam que os Estados Unidos é o país que mais contribui para a OTAN, respondendo por cerca de um terço dos gastos da organização. 

“Depois da invasão russa da Ucrânia, os países europeus querem importar mais armas e mais rápido”, observou Pieter D. Wezeman, pesquisador sênior do Programa de Transferência de Armas do Sipri, ao comentar os dados.

Antes do início do conflito no leste europeu, os ucranianos não exerciam protagonismo no comércio global de armas. No relatório do Sipri, a Ucrânia passou a ser um dos quinze países que mais importa armas no mundo. O ponto principal está no ano de 2022: desde que começou a guerra, a Ucrânia saltou para a 3ª posição no ranking mundial de importação de armas. Isso inclui, segundo o relatório do Sipri, a “transferência de armas” no sentido amplo, ou seja, tanto a compra como o recebimento de doação de armas.

Quem fornece armas para a Ucrânia?

Para começar, é preciso reconhecer que os números sobre doações de armas são voláteis. Sobretudo pelo fato de que o conflito entre Rússia e Ucrânia está em andamento – os números, portanto, vêm sendo atualizados com frequência. Em segundo lugar, as estatísticas sobre fornecimento de armas à Ucrânia indicam uma tendência na geopolítica global e militar, já observadas há décadas: os Estados Unidos sustentam a capacidade bélica do mundo.

Antes mesmo de o longo conflito entre Rússia e Ucrânia eclodir em guerra, os Estados Unidos já ajudavam o país com aparato militar. Em um período de oito anos – entre a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, e o começo da guerra de fato –, os EUA forneceram 2,7 bilhões de dólares em armamento ao exército ucraniano. O valor representava, antes do conflito, mais de 90% de todo o suporte internacional à Ucrânia.

Depois que a guerra começou, esse montante cresceu consideravelmente. Dados do Instituto Kiel para a Economia Mundial, publicados em 20 de fevereiro, data que marcou um ano da guerra, mostraram que, até janeiro deste ano, os Estados Unidos doaram 46,6 bilhões de dólares à Ucrânia. Todos os outros países europeus somados, além da própria União Europeia, enquanto bloco, forneceram cerca de 52 bilhões de dólares.

No início desta semana, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, anunciou a autorização de um repasse de mais de 350 milhões em ajuda militar à Ucrânia. “Somente a Rússia poderia encerrar sua guerra hoje. Até que a Rússia o faça, ficaremos unidos à Ucrânia pelo tempo que for necessário”.

A questão militar norte-americana é particularmente complexa. Apesar dos gastos que o país tem com armamentos, a autorização para doações como essas podem acontecer de maneira ordinária, sem estar diretamente ligada ao orçamento. Ou seja, à medida que o conflito venha a se intensificar, os EUA podem seguir fornecendo mais suporte à Ucrânia, na forma de armas, drones, bombas e outros artefatos. Na semana passada, aliás, CartaCapital publicou os detalhes da proposta de orçamento que o presidente norte-americano Joe Biden enviou para o Congresso e que pode levar os EUA a terem o maior orçamento militar de sua história, em um valor de quase 1 trilhão de dólares.

Apesar do protagonismo norte-americano na questão, a doação de equipamentos de guerra por outros países – leia-se, europeus – é um fator importante para a Ucrânia, sendo, inclusive, demanda do próprio presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. 

Na semana passada, por exemplo, a Polônia e a Eslováquia se tornaram os dois primeiros países da Otan a se comprometerem a doar caças à Ucrânia. No caso polonês, será feita a transferência de quatro caças MiG-29. Já a Eslováquia anunciou que irá doar treze caças do mesmo modelo. 

Mais recentemente, na terça-feira 21, a ministra da Defesa do Reino Unido, Annabel Goldie, afirmou que o país poderá fornecer à Ucrânia munições que contêm urânio empobrecido. Basicamente, a substância é utilizada em projéteis com o objetivo de penetrar equipamentos de aço. A promessa não ficou sem resposta do lado russo: na sequência, Putin afirmou, em coletiva, que, caso o envio seja realizado, “a Rússia terá que responder de acordo“. 

No plano anunciado no dia 21 de março, a União Europeia comunicou que irá fornecer 1 bilhão de euros em fundos compartilhados para que os países do bloco possam encontrar projéteis em suas reservas e enviá-los à Ucrânia. Na etapa seguinte, mais um montante de 1 bilhão de euros será destinado, dessa vez, para compras conjuntas de projéteis de 155mm. O presidente ucraniano agradeceu o bloco europeu, afirmando que a ação “é um passo estratégico” que dá confiança sobre a unidade da Europa.

Gastos militares dos países europeus no contexto da guerra

Em 2006, a OTAN definiu que os seus países membros deveriam começar a destinar 2% do Produto Interno Bruto (PIB) para o setor militar. Em 2014, no contexto da anexação da Crimeia pela Rússia, a demanda foi reforçada pela organização. 

Na última terça-feira 21, o chefe da OTAN afirmou que 7 dos 30 membros cumpriram a “meta”. Segundo ele, a partir do mês de julho, quando acontecerá a próxima reunião da OTAN, o percentual não deverá ser mais considerado o teto, mas o mínimo necessário. “O ritmo que temos para o aumento dos gastos com a defesa não é alto o suficiente. Em um mundo mais perigoso, precisamos investir mais”, afirmou Stoltenberg.

A Alemanha, maior economia da Europa, enfrenta questões internas problemáticas sobre o tema. Por razões históricas relacionadas à situação do país depois da II Guerra Mundial e ao longo processo de divisão durante a Guerra Fria, os alemães deixaram de incentivar, ao longo das últimas décadas, o aumento dos gastos militares. 

No primeiro semestre do ano passado, pressionada pelo conflito entre Rússia e Ucrânia, a Alemanha teve que alterar a sua Lei Fundamental, visando cumprir, após anos de reticência, a meta da OTAN. O chanceler alemão, Olaf Scholz, anunciou, em diferentes oportunidades, que destinaria 100 bilhões de euros em ajuda à Ucrânia e que o seu país alavancaria os gastos com defesa: de cerca de 1,7% do PIB (em 2022) para 2%.

No final de janeiro, o presidente da França, Emmanuel Macron, anunciou que o orçamento das Forças Armadas da França poderá chegar a 430 bilhões de euros, entre 2024 e 2030. Atualmente, o orçamento médio anual em defesa da França é de 49,2 bilhões de euros. Com o aumento, o orçamento passará a ser de 68,8% ao ano, o que representa um aumento de quase 30%.

Países tradicionalmente pacíficos, como a Suécia e a Finlândia, já comunicaram o objetivo de aderir à meta da OTAN. A Polônia, que faz fronteira com a Rússia, destinou 2,2% do seu PIB para defesa em 2022 e informou que pretende chegar a 3% em 2023. O país comunicou que, a depender do desdobramento do conflito, pode destinar gastos adicionais que façam o percentual chegar a 4% ainda este ano.

Em uma tentativa de fornecer um panorama sobre como a guerra iniciada em fevereiro do ano passado impactou nos instrumentos de defesa dos países europeus, a empresa de consultoria McKinsey divulgou, no último mês de dezembro, um relatório que indicou o seguinte:

– Em termos orçamentários, a guerra entre Rússia e Ucrânia amplificou uma tendência, presente nos últimos anos, de aumento de gastos dos países europeus com defesa. Em média, esses países vinham aumentado em 6%, a cada ano, os gastos militares;

– Mesmo que os europeus não estivessem em alerta com questões de segurança após o início da guerra, os gastos militares dos países aumentariam de 296 bilhões de euros, em 2021, para 337 bilhões, em 2026;

– No cenário em que a guerra entre Rússia e Ucrânia venha a gerar grande impacto no financiamento da defesa, os gastos podem aumentar em 65%, chegando a quase 500 bilhões de euros em 2026.

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