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Questão de Estado

A escassez de figurinhas da Copa do Mundo provoca alvoroço na Argentina e leva o governo a intervir

Messi, a figurinha mais difícil - Imagem: Andreas Kudacki/AFP e Redes sociais
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O shopping center Via ­Manzanares, no subúrbio de Pilar, região norte de Buenos Aires, é um círculo de lojas à moda antiga em torno de um estacionamento modesto que geralmente atende a uma área rural pontilhada de condomínios fechados e clubes de polo, num país que tem os melhores jogadores desse esporte no mundo.

Há um pequeno supermercado, uma loja de bicicletas, uma loja de sushi para levar, um café e não muito mais, exceto por um vira-lata sonolento chamado Canela que se aproxima dos pedestres que param para comprar um pacote de cerveja, tomar um café rápido ou pedir uma bandeja de sushi.

Mas nos últimos dias a paz local foi perturbada pelos torcedores não de polo, mas de futebol. Uma grande quantidade de crianças e adultos esperava pacientemente na fila diante da loja de doces, desesperados para comprar “figuritas” – adesivos de jogadores de futebol semelhantes aos cartões de beisebol dos Estados Unidos. O objetivo é encher o tradicional álbum da Copa do Mundo da Editora Panini, ritual de significado quase religioso que se repete a cada quatro anos na Argentina quando rola a Copa do Mundo. As figurinhas adesivas vêm em pacotes selados e não há garantia de que os colecionadores encontrarão os jogadores necessários para completar o álbum. Vendido em países do mundo todo, a versão no Reino Unido custará aos fãs cerca de 870 libras (mais de 5 mil reais) para preencher.

Com a Copa do Catar a se aproximar rapidamente, a Argentina entrou num turbilhão vertiginoso que tem superado a passos largos qualquer furor anterior por figurinhas, num país que respira, sonha e vive o futebol. “Não consigo lidar com a quantidade de gente que quer figurinhas”, disse a atendente da doceria da Via Manzanares no início da semana, antes de ter de informar aos clientes perturbados que havia ficado sem novos pacotes na quinta-feira 6.

O secretário de Comércio recebeu duras críticas por mediar reunião entre executivos da Editora Panini e donos de quiosques

A mania dos adesivos varreu a Argentina como um tsunami este ano e criou uma escassez no mercado que literalmente se tornou um assunto de Estado. As lojas de doces, conhecidas aqui como “quioscos”, eram o ponto de venda tradicional de embalagens de figurinhas, mas neste ano a Panini começou a fornecer os adesivos para outros estabelecimentos, como supermercados e postos de gasolina. A decisão provocou protestos dos donos de quiosques.

O secretário de Comércio, Matías Tombolini, foi forçado a convocar uma reunião com executivos da Panini e representantes de docerias para tentar resolver a escassez que levou alguns pais, segundo a mídia, a ameaçarem processar a editora por causa da angústia que o fato tem causado em seus filhos. “A reunião começou com uma avaliação da situação do mercado de figurinhas da Copa do Mundo”, tuitou o secretário de Comércio, antes de se oferecer para “colocar nossas equipes jurídicas e técnicas à disposição para colaborar na busca de possíveis soluções”.

Entretanto, com a inflação fora de controle e a pobreza a se aproximar de um segmento cada vez maior da sociedade, a intervenção do governo deu em retrocesso. Houve um alvoroço nas redes sociais contra as autoridades que desviaram recursos do Estado para resolver o problema dos adesivos, e o governo suspendeu abruptamente sua intervenção.

A figurinha mais difícil de encontrar é a do craque argentino Lionel ­Messi, que supostamente disputará sua última Copa do Mundo nos jogos do ­Catar. Marc R. Stanley, embaixador dos ­Estados Unidos na Argentina, postou vídeo em êxtase no Twitter de si mesmo abrindo pacotes de adesivos. “Oh, caramba, eu tenho o Messi, não posso acreditar. É incrível. Eu tenho o Messi. Tudo bem, Messi, você é meu!”

Além de a empresa italiana Panini permitir que os adesivos sejam vendidos em outros locais que não apenas nas lojas de doces, a falta de figurinhas tem sido atribuída aos distribuidores que, segundo informações, ignoram os pontos de venda tradicionais para repassar diretamente no atacado a compradores ­individuais, às vezes online. Isso parece ter levado ao acúmulo de compradores em massa que, em seguida, vendem os adesivos no site de compras Mercado Livre por até dez vezes o preço de varejo sugerido, de pouco menos de 1 dólar por embalagem.

Com a inflação perto de 100% neste ano e a recente tentativa de assassinato da vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner, que falhou quando a arma do agressor não disparou, talvez a Argentina estivesse precisando de alguma distração leve, e a escassez de adesivos parece bem adequada. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1230 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Questão de Estado “

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