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Quem é Javier Milei, o ‘liberal estridente’ que lidera as primárias na Argentina

Com retórica inflamada e estilo histriônico, o economista oferece uma resposta radical aos descontentes, em meio à contínua crise econômica do país

O presidente da Argentina, Javier Milei. Foto: Juan Mabromata/AFP/Getty Image
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Um sujeito de olhos claros, amarfanhado e com retórica anti-sistema chega às eleições presidenciais prometendo romper com a estrutura político-partidária (e, também, econômica) de um país em permanente crise. Seu discurso acolhe, ao mesmo tempo, a elite financeira  e uma parcela desamparada que, cada vez mais, desconfia da política representativa tradicional.

As características acima poderiam definir, lá no início de 2018, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Mas servem (guardadas algumas proporções) para fornecer um retrato de um correlato seu: o argentino Javier Milei, que largou na frente as primárias do país vizinhos, neste domingo 13.

A relação do economista de 52 anos com a classe política tradicional argentina pode ser definida pelo mote dw sua campanha, entoado ainda ontem à noite pelos milhares de apoiadores que celebravam o resultado: “Que se vayan todos” (algo como “que todos saiam”, em espanhol).

O lema não é novo. “Que se vayan todos” era o grito entoado há mais de vinte anos, durante a severa crise econômica vivida pela Argentina, que resultou em protestos de massa e fez o país ter cinco presidentes diferentes em menos de duas semanas. A frase exprime repulsa, tanto em 2001 quanto em 2023, à classe política, à institucionalidade e aos rumos da economia argentina.

Assim como o lema, as ideias de Milei não são, necessariamente, novas. Não é exagero dizer que o representante da chapa “A Liberdade Avança”, propõe, basicamente, a redução quase absoluta do Estado, deixando os rumos da economia e das relações sociais a cargo do mercado. Em uma massaroca de diferentes linhas teóricas do liberalismo, Milei se diz libertário, embora seja, por exemplo, contrário ao direito ao aborto – que foi liberado recentemente no país.

Quem é Javier Milei

Formado em Economia pela Universidade de Belgrano, na Argentina, Milei tem um passado ligado ao mundo corporativo. Trabalhou em consultorias, bancos e grupos responsáveis por desenhar políticas econômicas.

Para além da credencial formal, é o personagem Milei que chama a atenção nas eleições da Argentina. No uso massivo de palavrões, nos cabelos desgrenhados e no contato constante com os mais jovens, um adjetivo que pode caracterizar Milei é “rebelde”. Característica, aliás, que não é de agora: já na escola católica onde estudou, segundo o seu biógrafo Juan Luis González, Milei era chamado de “El Loco“. 

Compõe o personagem o estilo histriônico. Em 2017, Milei lançou um programa de rádio chamado Demoliendo Mitos (“Derrubando Mitos”, na tradução”), em que atacava políticos e economistas aos gritos. O programa teve baixa audiência, mas foi por meio dele que Milei começou a participar de programas no horário nobre da televisão argentina, dando, inclusive, opinião sobre qualquer assunto da sociedade. 

O perfil explicitamente adolescente poderia ter lugar, há alguns anos, nas esferas marginalizadas do campo político. Mas Milei – a exemplo de Trump e de Bolsonaro – é um fenômeno da comunicação catapultada, também, pelo léxico das redes sociais. O lugar onde a prevalência da imagem se impõe, em não raros casos, à prudência da informação, como já apontou o semiólogo e editor francês Ignacio Ramonet.

Em entrevista a CartaCapital, o pesquisador Ariel Goldstein, do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), relatou que, em conversas com pessoas da campanha de Milei, identificou um discurso voltado às gerações mais novas, que se rebelam contra os pais ligados ao kirchnerismo. “A imagem de alguém que diz o que pensa e é sincero é o ponto-chave da campanha de Milei“, afirmou o pesquisador.

Alinhado ao personagem Milei, existe a sua plataforma política. Essa, aliás, é conhecida em países que adotaram, de maneira mais aguda, um regime economicamente liberal: defesa das privatizações, enxugamento do Estado e defesa irrestrita dos ditames do mercado. Em relação às questões especialmente argentinas, Milei propõe dolarizar a economia, como forma de conter a desvalorização do peso argentino. Some-se a isso a ruptura com a ‘casta’ (a expressão usada por apoiadores de Milei para a classe política).

Como já mencionado, Milei refere-se a si mesmo como um “anarcocapitalista”. Mas, afinal, o que significa a expressão, aparentemente contraditória? 

Enquanto corrente teórica, o liberalismo assume duas dimensões. A primeira é, propriamente, política, e foi por meio dela que os direitos individuais, ainda no século XVII, foram concebidos. A defesa da liberdade – religiosa, de pensamento e de orientação sexual -, ao longo da História, foi usada, muitas vezes, inclusive, por pessoas contrárias ao liberalismo. A segunda dimensão talvez seja a mais conhecida quando um político ou economista se diz “liberal” e tem como centro a defesa do livre mercado. 

O “anarcocapitalismo” de Milei, portanto, assume essas dimensões em grau máximo. Do ponto de vista econômico, manifesta um anseio para que o Estado se restrinja às suas funções mínimas. O fim do Banco Central é um exemplo. Mas Milei, ao menos no discurso, parece não se restringir a isso. O vencedor das primarias argentinas já defendeu, recentemente, o casamento gay, por exemplo, sob um argumento puramente liberal: esse não é um assunto de interesse do Estado. É, inclusive, contrário à própria ideia de casamento. 

Milei já chegou a defender a venda de órgãos humanos. Mais uma vez, utilizou um argumento estritamente liberal, ao afirmar que esse “mercado” acontece por meio de transações comerciais entre pessoas adultas e que o Estado não deve interferir.

O futuro político imediato poderá revelar o que, de fato, poderá se sustentar no discurso do político argentino. Milei foi o líder das primárias e, daqui em diante, ainda que ele o negue, forças políticas e econômicas tradicionais serão exercidas sobre o candidato. Além disso, o resultado do pleito não mostrou uma vitória avassaladora: com 97% das urnas apuradas, Milei obteve 30% dos votos, enquanto a direita macrista, representada por Patricia Bullrich, ficou com 28%. 

Além disso, pesará sob Milei a acusação, já sob o âmbito da Justiça Eleitoral da Argentina, de que ele esteve envolvido em um esquema de venda de candidaturas no país. O caso já está em debate, tanto no judiciário, quanto na esfera política.

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