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Com Milei, ultradireita surpreende na Argentina e larga na frente nas primárias
Sergio Massa representará o peronismo, enquanto Patricia Bullrich será o nome da direita macrista
Os argentinos foram às urnas neste domingo 13 para as eleições primárias obrigatórias. O resultado define os candidatos que concorrerão à Presidência, em 23 de outubro.
Com mais de 90% das mesas contabilizadas, a principal surpresa está na extrema-direita, com Javier Milei, que chegou a 30% dos votos.
A direita macrista, com a coalizão Juntos por El Cambio, obteve 28% e ficou na segunda posição: Patricia Bullrich, ex-ministra da Segurança, marcou 17% e superou Horacio Larreta, chefe de governo da cidade de Buenos Aires, que ficou com 11%.
Os peronistas fecharam o dia na terceira colocação. O ministro da Economia, Sergio Massa, conquistou 21% dos votos e venceu Juan Grabois, com 6%. A coalizão, portanto, representa 27% do eleitorado nas primárias.
Confira a relação dos principais candidatos à Presidência, com os resultados deste domingo:
- Javier Milei, por La Libertad Avanza;
- Patricia Bullrich, por Juntos por El Cambio
- Sergio Massa, pela coalizão Unión por la Patria.
Especialistas ouvidos por CartaCapital ressaltam que a ascensão política de Milei nos últimos anos está ligada à deterioração econômica do país. O governo neoliberal de Mauricio Macri, de 2015 a 2019, fez disparar a inflação, mas a gestão peronista de Alberto Fernández e Cristina Kirchner, por diversos motivos, não conseguiu debelar o avanço dos preços. Mais: atualmente, a pobreza alcança quase quatro em cada dez argentinos. É um prato cheio para a ultradireita.
Nos últimos meses, eleições em diferentes províncias da Argentina indicaram os limites da extrema-direita, como nas disputas em Córdoba, Jujuy e Santa Fe, nas quais os candidatos de Milei foram derrotados. Havia uma dúvida, portanto, sobre a capacidade do ultradireitista de conquistar uma boa performance em dimensão nacional.
“Pela primeira vez haverá uma extrema-direita com uma votação expressiva na Argentina”, diz Ariel Goldstein, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires e pesquisador no Instituto de Estudos Latino-Americanos e do Caribe.
Segundo ele, Milei já marcou a eleição, uma vez que, mesmo que não chegue ao segundo turno, seus eleitores serão decisivos para Massa e Bullrich.
Javier Milei é forte especialmente entre setores de uma machucada juventude, alvo marcante da precarização no trabalho, da pobreza e da violência.
À esquerda, uma ampla corrente de cientistas políticos vê Massa como uma figura extremamente pragmática, ambiciosa e oportunista. Seu passado, a propósito, está longe de ser o de um peronista raiz.
O peronismo é o principal movimento popular da história da Argentina e se formou em torno do ex-presidente Juan Domingo Perón e da ex-primeira-dama Eva Perón, duas figuras cuja influência sobrevive ao passar das décadas com admirável resiliência.
Sergio Massa já foi prefeito de Tigre, na grande Buenos Aires, deputado nacional e presidente da Câmara, antes de se tornar o superministro da Economia. Sua relação com a vice-presidenta Cristina Kirchner, a mais importante representante peronista em muitas décadas, foi marcada por altos e baixos, a depender da direção dos ventos.
“Massa tem sido representado como um candidato de diálogo com diferentes setores políticos da Argentina. Seu pragmatismo lhe permitiu ganhar o apoio de um amplo setor do peronismo, do sindicalismo e das elites empresariais”, resume Nahuel Toscano, cientista político da Universidade de Buenos Aires.
Não é possível analisar a eleição sem mencionar uma decisão de Mauricio Macri que deixou a Argentina de joelhos diante do Fundo Monetário Internacional. Em 2018, o então presidente contraiu um empréstimo de 44 bilhões de dólares com o órgão, uma fatura oferecida como “legado” a Alberto e Cristina.
Não é só isso. A Argentina fechou 2014, ano anterior à eleição de Macri, com uma inflação de 23,9%. Hoje, Massa quebra a cabeça para equacionar uma dívida e uma inflação que se converteram em uma bola de neve.
Confira os índices de cada um dos anos do governo de Mauricio Macri:
- 2016: 26,5%
- 2017: 25,7%
- 2018: 34,3%
- 2019: 53,5%.
“Massa tem sido associado aos interesses do círculo vermelho (expressão que designa as elites empresariais da Argentina) e de setores da classe média. Sua posição em relação aos compromissos da dívida assumida no governo Macri tem sido a de cumprir com o FMI para alcançar a estabilidade econômica e voltar a acessar o mercado financeiro global”, explica Toscano.
Para Mercedes Koch, mestre em Estudos Internacionais pela Universidade Torcuato di Tella, de Buenos Aires, a força de Massa reside em sua disposição para agir em momentos de crise.
“Ele soube aproveitar o vazio de poder na coligação de Alberto e de Cristina, estabelecendo-se como o ‘piloto da tempestade’, como dizem aqui”, afirma.
Há, no entanto, a outra face da moeda. “Acho muito complexo seu duplo papel de candidato à Presidência e de ministro, pois se não conseguir demonstrar resultados à sociedade argentina, sua credibilidade estará em jogo”, pondera Koch.
Outra dúvida recorrente envolve o grau de esforço pessoal a ser empreendido por Cristina na campanha. Massa não é o candidato dos sonhos da vice-presidenta, que, após decidir não concorrer, demonstrou predileção por Eduardo “Wado” de Pedro, ministro do Interior.
Goldstein entende ser difícil imaginar o papel de Cristina na disputa, inclusive porque o peronismo vive um período de “redefinição”, diante dos obstáculos dos últimos anos.
“Ela quer preservar sua parte do poder. Ao mesmo tempo, tem uma desconfiança grande em relação a Massa”, explica o especialista. “Com Massa ela tem uma tensão desde que ele saiu do peronismo para competir contra ela. Agora são aliados, mas é uma relação muito pragmática, pelo poder.”
De fato, a história entre Massa e Cristina se construiu à base de trovoadas. Há episódios tão reveladores quanto insólitos, a exemplo dos documentos vazados em 2010 nos quais ele ofendia o ex-presidente Nestor Kirchner. Massa também encabeçou a criação da Frente Renovadora, formada para se contrapor ao kirchnerismo dentro do campo peronista.
Em 2015, decidiu se lançar candidato à Presidência, em vez de apoiar Daniel Scioli, o postulante chancelado por Cristina. Mauricio Macri venceu aquela eleição, com Scioli em segundo e Massa em terceiro.
Quatro anos depois, Massa ainda nutria o sonho de chegar à chefia do Executivo, mas acabou por se juntar à coalizão que apoiou Alberto Fernández, a Frente de Todos, hoje chamada de União pela Pátria.
Sergio Massa foi o grande nome da chapa na corrida à Câmara, para a qual foi eleito e da qual se tornou presidente em dezembro de 2019. Ele permaneceu no cargo até agosto do ano passado, quando assumiu o Ministério da Economia.
E agora? Com uma economia capenga, Massa pode ser um candidato competitivo? Mercedes Koch entende que as chances da centro-esquerda aumentam com a vitória de Patricia Bullrich sobre Horacio Larreta nas primárias da direita.
Bullrich representa a “ala dura”, enquanto Larreta buscaria disputar com Massa o mesmo eleitor indeciso e o chamado centro político.
“O radicalismo do discurso de Bullrich beneficiará o candidato do governo, como um garantidor da continuidade do establishment”, avalia a cientista política.
Com frequência, Massa é definido como oportunista, pragmático, moderado e ambicioso. É visto como alguém capaz de atrair sindicalistas e de conversar com os Estados Unidos, os empresários e o FMI, além de ter um canal de diálogo com parte da mídia, o que não é desprezível.
Apesar de ele não ser um exemplo de peronista aos olhos da esquerda, uma eventual vitória eleitoral em 2023 representaria um dos grandes triunfos da história do movimento. Afinal, trata-se do chefe da Economia de um governo tão impopular que o presidente Alberto Fernández decidiu sequer tentar a reeleição.
Com inflação nas alturas, falta de dólares e uma persistente pobreza, cabe a Massa assumir a responsabilidade de impedir a chegada da direita à Casa Rosada, seja por meio da ferocidade de Bullrich ou das bravatas de Milei.
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