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Pigmeu moral

A cada nova atrocidade, Israel perde terreno na batalha pela opinião pública

De Leste a Oeste, até em Israel, as manifestações contra a limpeza étnica em Gaza aumentam em proporção e intensidade – Imagem: Jalaa Marey/AFP e Amy Osborne/AFP
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Israel tem confirmado no campo de batalha sua superioridade militar. A Cidade de Gaza, maior e mais simbólica localidade da Faixa, está cercada por tanques e soldados, enquanto a complexa rede de túneis do Hamas é destruída e os bombardeios ininterruptos transformam o enclave palestino em um cenário pós-apocalíptico de filme de ficção científica. Os ataques avançam por “terra, por mar e por ar”, como havia prometido o ministro da Defesa, Yoav Gallant. Longe da região está em curso, no entanto, outra guerra, a da opinião pública, e nesta os israelenses perdem cada vez mais terreno. Após um mês do início do conflito, a solidariedade provocada pelos assassinatos brutais cometidos pelo Hamas em 7 de outubro, quando era um sacrilégio contextualizar os fatos e relembrar os 75 anos de humilhações impostas à Palestina, tem paulatinamente dado lugar a um crescente repúdio ao massacre de civis indefesos ordenado pelo governo de ­Benjamin Netanyahu. Gaza, declarou na segunda-feira 6 António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, virou “um cemitério de crianças”. ­Guterres, que, apesar das retaliações, tem mantido uma postura corajosa na defesa do cessar-fogo imediato, mais uma vez se ateve aos fatos. Dos cerca de 10 mil palestinos mortos em 30 dias, 4 mil são menores de idade. Os bombardeios não poupam campos de refugiados, ambulâncias, abrigos, hospitais. Água e comida entram na “maior prisão a céu aberto” em conta-gotas e corpos são empilhados nas ruas. Escombros ao norte, ratoeira ao sul. Em um canto de Gaza, ao menos 2 milhões de seres humanos, brasileiros entre eles, lutam pela sobrevivência, proibidos de cruzar a fronteira em direção ao Egito.

Embora o governo continue a acusar de forma indiscriminada os críticos, qualquer um, de antissemitismo, os protestos contra a invasão não só se espalham pelo mundo, mas também acontecem nas barbas dos rabinos. Há dias, moradores de diferentes cidades israelitas têm saído às ruas ou se aglomerado na porta de quartéis para pedir o fim do conflito e a destituição do impopular Netanyahu (reportagem à página 28). No sábado 4, quase 9 mil berlinenses desafiaram a proibição do governo local e rea­lizaram um protesto “pacífico” em solidariedade aos palestinos. Ao longo das semanas, multidões se manifestam em países árabes e sul-americanos, enquanto, nas tevês de Leste a Oeste, os termos “limpeza étnica” e “genocídio”, antes proibidos, passaram a ser usados com maior frequência e liberdade quando se trata de definir a reação de Tel-Aviv.

Gaza virou “um cemitério de crianças”, definiu António Guterres, secretário-geral da ONU. Os fatos lhe dão razão

Fiador do “direito à autodefesa” de Israel, Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, sente na pele a mudança de humor. O suporte incondicional a ­Netanyahu ameaça o projeto de reeleição do democrata. Segundo recente pesquisa do Instituto Gallup, o apoio a Biden entre os eleitores do partido caiu 11 pontos porcentuais – e boa parte da queda, captada principalmente entre jovens, mulheres e minorias, é atribuída ao aval da Casa Branca ao revide indiscriminado do exército israelense. Outro levantamento, divulgado pelo The New York Times no domingo 5, coloca o rival Donald Trump, há um ano das eleições, na dianteira da preferência eleitoral em cinco de seis estados considerados decisivos. Trump aproveita a deixa. Em eventos recentes, o republicano explora os erros da política externa do adversário, tanto no Oriente Médio quanto na Ucrânia, e os medos do eleitorado norte-americano. “O mundo nunca esteve tão perto de uma guerra nuclear”, discursou. “E só eu posso garantir a segurança do planeta”.

Depois de ignorar as evidências da catástrofe e bloquear toda e qualquer tentativa, no Conselho de Segurança da ONU ou fora dele, de ­demover Netanyahu de invadir Gaza, Biden parece intimidado pelas pesquisas de opinião. Não por coincidência, o presidente despachou novamente à região o secretário de Estado, Anthony Blinken, com uma nova missão: convencer os israelenses a adotar “pausas humanitárias”, proposta considerada inócua pela maioria dos especialistas em direitos humanos (reportagem à página 26). “Acreditamos que cada um destes esforços seria facilitado por acordos que aumentassem a segurança dos civis e permitissem uma prestação eficaz e sustentada de assistência”, declarou Blinken em Tel-Aviv. Antes, o secretário fez outro giro infrutífero por países árabes e muçulmanos. Ignorado pelo turco Recep Erdogan, feroz na condenação ao massacre em Gaza, restou ao enviado de Biden uma fotografia, em Ramallah, ao lado do desacreditado Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, e especulações a respeito do improvável, a administração do que restar do enclave.

Um aperto de mão com o desacreditado Abbas foi o máximo que Blinken obteve no último tour – Imagem: AFP

Faltou combinar com os russos, ou melhor, com os judeus. Na noite da segunda-feira 6, em entrevista à ABC News, Netanyahu desdenhou da proposta de “pausa humanitária” e rejeitou um cessar-fogo sem a prévia libertação dos 240 reféns israelenses em poder do ­Hamas. Mais: anunciou uma longa ocupação, quiçá a anexação definitiva, da Faixa de Gaza. “Vamos manter por tempo indefinido a responsabilidade geral pela segurança” na região, declarou à rede de tevê dos EUA. “Quando não temos essa responsabilidade, há uma erupção do terror.” Quem acompanha as disputas regionais não se surpreende. Desde a criação do Estado de Israel, em 1947, as mais sangrentas batalhas terminam na expansão do território judeu sob a justificativa da “segurança”. Entre os planos do atual governo, revelaram jornais israelenses, estaria a deportação de todos os palestinos de Gaza para um campo de refugiados no Deserto do Sinai, no Egito. Esta é a menos radical das ideias em circulação. No domingo 5, o primeiro-ministro, a contragosto, viu-se forçado a anunciar a suspensão do ministro do Patrimônio, Amichai Eliyahu, por causa das singelas observações do subordinado. Em entrevista à rádio Kol Berama, Eliyahu corroborou a proposta do entrevistador de lançar uma bomba atômica no enclave, arrasar tudo e eliminar a população local. “Esse é um caminho”, respondeu sem titubear o ministro, que, animado, deu asas à imaginação. Nada de ajuda humanitária, defendeu, não existem civis inocentes, acrescentou, os palestinos podem ir “para a Irlanda ou para o deserto”, sugeriu, e quem agitar uma bandeira do Hamas ou da Palestina “não deveria poder viver na face da Terra”. Seria o ministro um extremista fora da curva no governo ou somente um boquirroto? Detalhe: Eliyahu vive em um assentamento ilegal de colonos judeus em Rimonim, na Cisjordânia, área expropriada dos palestinos em 1977.

Netanyahu promete uma longa ocupação da Faixa de Gaza, em nome da “segurança”. Uma nova anexação está em curso?

A relutância do governo Netanyahu em recuar da ofensiva em Gaza está longe de ser o único problema. Os riscos da disseminação do conflito pelo Oriente Médio permanecem altos. Em solidariedade à Palestina e ao Hamas, combatentes do Hezbollah intensificaram os ataques na fronteira. Em resposta, Herzi Halevi, chefe do Estado-Maior de Israel ameaça colocar em curso uma operação militar ao sul do Líbano. “Estamos prontos para atacar a qualquer moment

o. Sabemos que pode acontecer.” Naim Qassem, segundo na hierarquia do grupo armado, retrucou: “Responderemos na mesma ­moeda”. Combates diretos entre as tropas israelenses e o Hezbollah elevariam a guerra a outro patamar de violência e destruição. Perto dos aliados libaneses, bem equipados e treinados, o Hamas não passa de um grupo de escoteiros. Sob pressão interna e externa, o governo libanês tenta como pode controlar os ânimos. Em entrevista à CNN, o chanceler Abdallah Bou Habib reiterou os esforços do país para evitar a escalada. Washington, por sua vez, usa os dois porta-aviões norte-americanos estacionados no Mar Mediterrâneo para dissuadir o Hezbollah e o Irã de se intrometerem. Mas quem ainda tem medo de Biden?

Trump se aproveita da queda de popularidade de Biden – Imagem: Adam Gray/AFP

O Conselho de Segurança da ONU, cuja presidência rotativa foi transferida do Brasil à China, continua bloqueado pelos Estados Unidos – uma nova reunião na segunda-feira 6 não terminou no mesmo impasse –, restam os alertas dos especialistas e da chamada comunidade internacional. Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, a italiana ­Francesca ­Albanese, relatora especial das Nações Unidas para os territórios palestinos ocupados, reafirmou o que só Netanyahu, ­Biden e seus aliados menores teimam em aceitar: eliminar o Hamas, hipótese quase improvável, só geraria mais radicalização. “Mesmo se fosse possível erradicar (o grupo)”, declarou. “Se Israel exterminasse todos, todos, não somente os militantes, mas qualquer um que trabalhasse para o Hamas, incluídos os prestadores de serviços, mesmo que fosse possível, sem o fim da ocupação israelense em vigor as queixas continuariam a crescer e outra resistência emergiria. É natural, quase uma lei da física. A história confirma.”

Albanese lamenta ainda que o conflito tenha provocado um retrocesso na discussão sobre a situação palestina. “O dia 7 de outubro nos lançou em um território desconhecido, muito mais obscuro. Antes, quem defendia os direitos dos palestinos, incluídos muitos israelenses, sentia que o debate sobre o apartheid estava prestes a ganhar legitimidade. Esse espaço se reduziu vertiginosamente.” A relatora vai além. O governo Netanyahu, acredita, não teria a premissa de invocar o direito à autodefesa ao abrigo da carta da ONU pelo fato de a ameaça partir não de um Estado, mas de um grupo paramilitar em uma região ocupada à força por Israel. Por dizer obviedades, a exemplo de Guterres, Albanese tem sido acusada de antissemitismo. •

Publicado na edição n° 1285 de CartaCapital, em 15 de novembro de 2023.

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