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Tô nem aí

O governo Netanyahu ignora as pressões dos EUA e da comunidade internacional e prepara o ataque final a Rafah

Palavras. A recomendação do Conselho de Segurança da ONU não passa disso, uma recomendação. Israel acusa as Nações Unidas de antissemitismo – Imagem: AFP e Manuel Elías/ONU
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Quando Gilad Erdan, o enviado de Israel à Organização das Nações Unidas, apresentou-se ao Conselho de Segurança para protestar contra a resolução de cessar-fogo recém-aprovada, era uma figura mais solitária do que nunca na enorme câmara. Os Estados Unidos, até então constantes protetores de ­Israel na ONU, recusaram-se a usar seu veto e permitiram o pedido do Conselho por uma trégua imediata, embora esta não incluísse, como Erdan apontou furiosamente, qualquer condenação ao massacre de israelenses pelo Hamas que deu início à guerra.

Esse tinha sido um limiar para os Estados Unidos até a segunda-feira 25, assim como condicionar um cessar-fogo à libertação de reféns. Depois de quase seis meses de bombardeios constantes, com mais de 32 mil mortos em Gaza e uma crise de fome iminente, essas “linhas vermelhas” perderam, no entanto, força, e a embaixadora norte-americana, Linda Thomas-Greenfield, não moveu a mão quando a presidência solicitou os votos contra a resolução.

A mensagem foi clara: o tempo da ofensiva israelense tinha acabado e o governo de Joe Biden não estava preparado para permitir que a credibilidade dos EUA no cenário mundial se esvaísse, ao defender um governo israelense que deu pouca ou nenhuma atenção a seus apelos para parar o bombardeio de áreas civis e permitir entregas substanciais de alimentos. “Este deve ser um ponto de virada”, afirmou o enviado palestino, Riyad Mansour, ao Conselho de Segurança, lamentando aqueles que morreram no tempo que seus integrantes levaram para superar as diferenças.

O Ocidente limita-se à retórica, enquanto o massacre continua

Nos dias seguintes, houve outros sinais de que o Ocidente estava a mudar de posição, ao menos em termos de retórica. Na terça-feira 26, a ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, anunciou que Berlim enviaria uma delegação para lembrar claramente a Israel suas obrigações relativas às Convenções de Genebra, e alertou o país para não ir adiante com uma ofensiva planejada na cidade de Rafah, no extremo sul de Gaza. Foi uma mudança de tom notável num país que tem sido o segundo maior apoiador e fornecedor de armas de Israel.

Entretanto, no Reino Unido, o secretário do Exterior, David Cameron, tem aumentado suas críticas a Israel, particularmente sobre o bloqueio da ajuda a Gaza, e ao mesmo tempo tem sido extremamente cuidadoso para evitar perguntas sobre se o Ministério das Relações Exteriores agora acredita que o governo de Benjamin Netanyahu tem violado o direito humanitário internacional. Tentar encontrar esse equilíbrio criou tensões reais e cada vez mais óbvias no governo britânico e do Partido Conservador.

Essa mudança definitiva de posições internacionais, porém, ainda não alterou nada para os 2,3 milhões de civis encurralados em Gaza. Os bombardeios e os tiroteios não pararam. Os políticos podem recalibrar o discurso, mas não suficientemente rápido para aqueles na linha de fogo. Nas 48 horas após o Conselho de Segurança ter-se aplaudido pela aprovação da resolução de cessar-fogo, 157 palestinos foram mortos em Gaza. Dezoito deles, incluindo ao menos nove crianças e cinco mulheres, morreram quando uma casa cheia de deslocados foi bombardeada no norte de Rafah. Doze morreram afogados ao tentar alcançar pacotes de alimentos lançados no mar.

Indomável. As tropas israelenses continuam a matar na Faixa de Gaza. Netanyahu faz beicinho diante das pressões de Washington – Imagem: Gabinete do Primeiro Ministro/Israel e AFP

O número de caminhões que entram em Gaza aumentou ligeiramente para cerca de 190 por dia, menos de metade do total diário em tempos de paz. Os inspetores israelenses ainda recusavam de 20 a 25 por dia, informou a NBC News, ao citar um funcionário humanitário egípcio, por motivos tão arbitrários quanto os paletes de madeira que transportam os alimentos não terem exatamente as dimensões corretas. Israel proibiu a UNRWA, a principal agência humanitária da ONU na região, de utilizar a passagem. Um funcionário do Departamento de Estado norte-americano disse à agência Reuters, na sexta-feira 29, que a fome havia se instalado em algumas partes de Gaza, fazendo eco a uma conclusão semelhante do Tribunal Internacional de Justiça em Haia.

Quatro dias depois de aprovada a resolução do Conselho de Segurança, o jornal Washington Post relatou mais entregas de armas dos Estados Unidos, incluindo 1,8 mil bombas MK84 de 2 mil libras, munições maciças envolvidas em numerosos eventos com vítimas em massa durante a operação militar em Gaza. Além disso, apesar da votação na ONU poucos dias antes, o governo Biden deixou claro a seus aliados que a ameaça de interromper o fornecimento de armas a ­Israel como alavancagem está fora de questão, ao menos por enquanto. O presidente disse num evento de captação de fundos na quinta-feira 28: “Não podemos esquecer que Israel está numa posição em que sua própria existência está em jogo”.

No Reino Unido existe, porém, uma sensação crescente de que as questões jurídicas, e outrass relacionadas à venda de armas, não podem ser evitadas, ou confundidas, por muito mais tempo. Como relata The Observer, a presidente conservadora da Comissão de Relações Exteriores, Alicia Kearns, uma ex-funcionária do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Defesa, disse num evento de arrecadação de fundos no norte de Londres, em 13 de março, que o departamento de Cameron recebeu conselho jurídico de que Israel violou o direito humanitário internacional, mas optou por não o divulgar. Essa afirmação causará arrepios em Londres e Washington, pois atinge o cerne de uma das questões mais sensíveis da diplomacia internacional. Em janeiro, ao comparecer perante a comissão de Kearns, Cameron evitou perguntas sobre se ele havia recebido tal aconselhamento jurídico: “Não consigo me lembrar de cada pedaço de papel que foi colocado na minha frente… Não quero responder a esta pergunta”. Mesmo então, nessa mesma audiência – e antes de se tornar tão falante quanto está agora –, admitiu estar “preocupado” com a possibilidade de Israel violar as regras.

O apoio em Israel à vingança em Gaza beira os 80%. “Temos todo o direito. Essa terra é nossa”, diz Roei Ben Dor, de 21 anos

Não é difícil compreender por que o Ministério das Relações Exteriores e Cameron podem estar sendo opacos. A existência de tal aviso, e qualquer reconhecimento aberto do mesmo, desencadearia uma série de exigências aos ministros, entre as quais a menos importante seria o dever de suspender todas as vendas de armas britânicas a Israel.

Na verdade, mesmo que o parecer jurídico sugerisse um “risco” de Israel ter infringido a lei, o país teria de interromper as exportações. Alguns dizem que o Reino Unido seria obrigado a deixar de compartilhar informações com os Estados Unidos, porque o aliado poderia entregá-las a Israel. Numa carta recente a Cameron, o secretário de Relações Exteriores de oposição britânico, David Lammy, centrou-se nesse mesmo ponto sobre as exportações de armas, referindo-se ao quesito 2c dos Critérios Estratégicos de Licenciamento de Exportações do Reino Unido, que exige que o governo “não conceda uma licença se determinar que existe um risco claro de que os itens possam ser usados para cometer ou facilitar uma violação grave do direito humanitário internacional”.

O quesito 2c acrescenta: “O governo também levará em conta o risco de os itens serem usados para cometer ou facilitar violência baseada em gênero ou atos graves de violência contra mulheres ou crianças”. Segundo Lammy, isto era “particularmente relevante, dado que as mulheres e as crianças constituem a maioria das vítimas da guerra em Gaza”.

Sangue nos olhos. O apoio em Israel aos ataques em Gaza beira os 80%. A população está convencida de que o mundo não a entende – Imagem: Jack Guez/AFP

Muitos deputados conservadores estão preocupados com a possibilidade de Cameron estar prestes a anunciar um embargo à venda de armas a Israel. Numa reunião da comissão de 1922, de novos deputados conservadores, no dia 25, o secretário de Relações Exteriores negou que estivesse a pensar em algo do gênero, embora funcionários do ministério digam que isso não pode ser descartado se Israel cumprir a ameaça de atacar Rafah.

Tal como nos Estados Unidos, o tom do Reino Unido pode estar em mudança para algo mais crítico em relação a Israel. Mas será muito mais difícil criar o espaço político para combinar esta situação com a relativa abertura ao parecer jurídico dado, e depois tomar as medidas consequentes.

Por seu lado, Israel tem sido duramente criticado, mas ainda está longe de ser um pária. Netanyahu e seu gabinete de guerra continuam a insistir que Israel prosseguirá com uma ofensiva em Rafah, onde mais de 1 milhão de civis deslocados se abrigaram, ignorando os avisos dos Estados Unidos de que seria um “erro” que sairia pela culatra da segurança israelense. Dois ministros de Israel deverão estar em Washington nos próximos dias para discutir a ofensiva planejada, numa visita que Netanyahu tinha inicialmente cancelado em protesto contra a abstenção do governo Biden no Conselho de Segurança.

Nos EUA, os jovens não demonstram a mesma complacência dos pais e dos avós com os desmandos de Israel

Autoridades norte-americanas dizem que aproveitarão as reuniões para apresentar um plano alternativo de contrainsurgência contra o Hamas em ­Rafah, concentrando-se em ataques precisos a figuras importantes do grupo palestino, mas admitem que não têm como obrigar seus visitantes a levar as sugestões a sério. “Eles são um Estado soberano.­ Não interferiremos em seu planejamento militar, mas delinearemos em termos gerais o que consideramos outro caminho a seguir para melhor alcançar os mesmos objetivos”, informou uma autoridade dos EUA. Num aparente desafio ainda maior às opiniões de Washington, militares israelenses começaram a criar uma zona-tampão em torno das fronteiras de Gaza que ocuparia 16% de toda a faixa costeira, segundo o jornal Haaretz.

A opinião pública israelense tem-se mostrado, até agora, amplamente imune à pressão dos Estados Unidos e de outras nações, e o apoio à operação militar em Gaza beira os 80%. Ainda mais preocupante para as esperanças de Washington­ de conter o conflito, também há mais de 70% de apoio público israelense a uma ação em grande escala contra o Hezbollah no Líbano, o que Washington conseguiu evitar até agora. Em Israel, os manifestantes pró-guerra estão muito mais em evidência do que os antiguerra. Colonos israelenses e ativistas de direita concentraram seus protestos na UNRWA, bloqueando as entradas do seu escritório em Jerusalém. Os manifestantes pintaram a resolução de cessar-fogo da ONU como um ataque ao país. “Se olharmos o número de condenações da ONU contra Israel versus o número de condenações à Coreia do Norte ou à Síria, podemos ver como eles estão obcecados por nós, e esta é mais uma prova de sua obsessão”, disse Roei Ben Dor, 21 anos, da cidade de Gedera, no centro de Israel. “Devíamos estar em Gaza não apenas por causa do Hamas, mas porque Gaza é nossa. Temos todo o direito de tomar ­Gaza, de tomar Rafah. Esta é a nossa terra.”

Aynat Libman, colona israelense de 52 anos de Efrat, argumentou que a resolução simplesmente prova o antissemitismo inerente às Nações Unidas. “Como poderia a ONU dizer que deveríamos parar a guerra antes de terminarmos de nos proteger?”, pergunta Libman. “Podemos fazer isso sozinhos. Mas, claro, seria bom se tivéssemos apoio.”

A ausência de malícia nas reprimendas da comunidade internacional encorajou o sentido de imunidade da atual coligação israelense em relação à opinião pública global, mas o início de uma fome em grande escala, ou uma ofensiva em Rafah, poderá trazer uma resposta muito mais incisiva por parte dos amigos e dos adversários de Israel. E há sinais de que os danos reais causados à posição global israelense poderão piorar com o tempo, possivelmente com consequências de longo alcance.

Michael Sfard, advogado israelense de direitos humanos e especialista em direito humanitário internacional, afirma que “a comunidade internacional falhou terrivelmente na tentativa de evitar a deterioração do conflito israelo-palestino até a catástrofe que hoje se desenrola em Gaza”. Ele acrescentou: “A resolução do Conselho de Segurança é um passo importante na direção certa. A questão é se as partes no conflito serão responsabilizadas se não o cumprirem”.

Protestos. Os palestinos contam com a simpatia global – Imagem: Steve Eason/London U.K.

Tal como no Reino Unido, a tensão nos Estados Unidos em torno da questão do direito internacional tem aumentado. Na última semana de março, um funcionário de direitos humanos do Departamento de Estado demitiu-se e afirmou que o governo desrespeita a legislação nacional que proíbe a assistência a quaisquer unidades militares estrangeiras envolvidas em atrocidades, ou a qualquer país que impeça “o transporte ou a entrega de assistência humanitária dos Estados Unidos”. De acordo com a autoridade, ­Annelle Sheline, o Departamento de Estado tem provas de violações, mas que estão sendo suprimidas. “Acho que alguns desses processos internos não serão divulgados até que a Casa Branca se disponha a isso.”

O Departamento de Estado informou que seu processo de revisão, até o momento, não deu motivos para se duvidar de que as garantias formais israelenses de cumprimento do direito humanitário internacional, conforme exigido pelo estatuto dos EUA, são “críveis e confiáveis”. Mas não deverá ser apresentado um relatório completo sobre essas garantias antes de 8 de maio, o que poderá tornar-se elemento de vantagem para Israel se não houver avanços no fornecimento de ajuda alimentar a Gaza. “É isso que devemos procurar”, avalia Aaron David Miller, ex-negociador do Departamento de Estado que hoje trabalha no Carnegie Endowment for I­nternational Peace. “Ficaria surpreendido se Washington julgasse que os israelenses não cumprem as regras.”

A outra mudança potencial com ramificações em longo prazo para o futuro de Israel é, no entanto, a percepção dos jovens norte-americanos, muitos dos quais abandonaram os reflexos pró-Israel dos seus pais e fizeram de Gaza um tema de campanha, com votos de protesto nas primárias presidenciais democratas. Uma recente pesquisa Gallup revelou que 63% dos eleitores entre 18 e 34 anos reprovam a ação militar israelense, assim como 55% dos entrevistados. “Estamos presenciando um momento sem precedentes de consciência coletiva sobre a ocupação em curso e as condições do apartheid em Israel-Palestina”, disse Rae Abileah, ativista judaica progressista nos EUA. “Nunca vi essa quantidade de manifestantes saindo consistentemente às ruas. Durante anos, você poderia dizer: ‘Você pode ser progressista, exceto sobre a Palestina’. Não podemos mais dizer isso.” Abileah reflete: “O aviso está mais claro do que nunca”. •


Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Publicado na edição n° 1305 de CartaCapital, em 10 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tô nem aí’

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