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Como Victoria Villarruel, vice de Milei, tenta redefinir o debate sobre a ditadura na Argentina

Filha e neta de militares, Villarruel apela ao relativismo para tentar reescrever uma história já superada pela sociedade argentina

Javier Milei e Victoria Villarruel, candidatos à Presidência e à Vice-Presidência da Argentina. Foto: Reprodução/Redes Sociais
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Não bastasse a surpresa da vitória do ultralibertário Javier Milei nas primárias das eleições presidenciais na Argentina, outro fator vem gerando inquietação nas bases sociais do país vizinho: Victoria Villarruel, 48, candidata a vice na chapa do economista argentino.

As semelhanças entre Milei e Villarruel são notáveis nos discursos de ambos – como seria de se esperar em uma chapa presidencial.

Fazem parte da plataforma da dupla, entre outros pontos, a defesa irrestrita à liberdade econômica e crítica estridente às elites políticas e financeiras da Argentina,

Entretanto, diferentemente de Milei, Villarruel não hesita em tocar em um tema sensível para a sociedade argentina: o tratamento às vítimas do regime militar do país, considerado um dos mais sangrentos do século XX na América do Sul.

Em suas palavras, reverberam a tentativa de reescrever uma história aparentemente já superada pela sociedade argentina.

Diferente do Brasil, a sombra do autoritarismo militar sobre os rumos políticos não incide de maneira determinante no debate público da Argentina. Resultado de um processo de transição democrática, entre os anos 1980 e 1990, que culminou na punição de militares envolvidos em assassinatos, desaparecimentos e torturas. 

No país vizinho, quase 2 mil condenações judiciais já foram impostas às antigas autoridades do governo, por conta do cometimento de crimes contra a humanidade. Fenômeno, aliás, invisível no Brasil. Antes, durante e depois do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o apoio dos militares foi, em maior ou menor grau, relevante

A quase indiferença dos órgãos de controle, figuras do núcleo duro do bolsonarismo não apenas exaltavam a mão forte dos quartéis, como se acostumaram a exigir uma intervenção militar nas ruas.

O próprio Bolsonaro, ainda um deputado do baixo clero, ao votar pelo impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), exaltou a memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais conhecidos torturadores do regime. Parlamentares presentes e entidades ligadas ao direito à memória repudiaram a fala, mas o Congresso Nacional, fechado pelo regime no passado, nada fez.

Quem é Victoria Villarruel

 Como apontam especialistas no tema, os militares argentinos, após o regime, “não deixaram herdeiros”, o que impede que se reconheça algum “legado” dos militares por lá.

Villarruel, que é filha e neta de militares, vem trazendo à pauta das eleições argentinas algo que parecia resolvido. Peronistas e anti-peronistas podem até discordar sobre os rumos econômicos do país ou sobre o papel do Estado na prestação de serviços. Mas houve, ao menos até agora, um acordo sobre a gravidade do regime militar e um consenso sobre a ideia de que militares devem ficar longe da política.

Na última segunda-feira 4, a capital argentina, Buenos Aires, viveu instantes de tensão por conta de um forte protesto de militantes defensores dos direitos humanos contra Villarruel. No mesmo dia, a candidata à vice promoveu, no Congresso, uma cerimônia em que tentou minimizar as reconhecidas violações promovidas pelo regime militar, especialmente o que vigorou entre 1976 e 1983.

‘Tese dos dois demônios’

Villarruel vem defendendo, ao lado de Milei, aquilo que ela mesma define como “tese dos dois demônios”. Basicamente, afirma que a violência praticada pelo regime militar não é diferente daquela que, segundo Villarruel, foi praticada por grupos armados que lutavam contra o fim do regime militar.

“É hora de reivindicar aqueles que lutaram contra os grupos terroristas que tentaram instalar o comunismo na Argentina e que hoje estão presos injustamente por uma Justiça enviesada e manipulada pela esquerda”, disse a candidata no ato realizado no início desta semana. 

Sua ideia não é nova. Em 2006, Villarruel criou o Centro de Estudos sobre o Terrorismo e suas Vítimas, reunindo parentes de pessoas que foram mortas por grupos armados do passado. Outro ponto especialmente importante na jornada de Villarruel pelo que chama de reparação histórica foi o seu encontro com o ex-presidente Jorge Videla, símbolo máximo do período mais duro da história recente da Argentina.

As ideias ressoam o que já fazia o seu pai, o tenente-coronel Eduardo Marcelo Villarruel, que, nos anos 1970, liderou um grupo de combate aos guerrilheiros, sob a batuta da ex-presidenta Isabel Perón. À época, Eduardo Villarruel, que faleceu em 2021, participava da Operação Independência. 

“Gostaria de ver um Poder Judiciário realmente independente levando essas pessoas [ligadas aos grupos armados anti-ditadura] a julgamento, assim como levou a julgamento os agentes do Estado que violaram direitos humanos. Gostaria de ver alguma igualdade e não sentir que algumas pessoas são cidadãos de segunda classe”, chegou a dizer Villarruel, ao sintetizar o que pensa sobre o tema, em uma entrevista dada em 2016.

Sete anos atrás, porém, Villarruel era uma figura política inexpressiva. Em 2021, porém, se tornou deputada – ela e Milei são os únicos representantes de sua coalizão, La Libertad Avanza, no parlamento –, e, agora, tem chances reais de se tornar vice-presidenta da Argentina, apesar da apertada disputa eleitoral.

Repúdio das Avós da Praça de Maio e do governo argentino

Uma das organizações mais importantes na sociedade argentina é a organização de direitos humanos Avós da Praça de Maio. Criado no final dos anos 1970 – auge do regime militar argentino -, o grupo atua localizando e restituindo crianças desaparecidas pela ditadura argentina. Até o momento, 133 pessoas – à época, crianças – já foram localizadas.

A líder das Avós da Praça de Maio é Estela de Carlotto, figura sempre presente no debate político argentino. A despeito do respaldo internacional, ela não escapou das críticas feitas por Villarruel, em tom de deboche. “É um personagem bastante sinistro para o nosso país, porque, com aquele olhar de vovozinha boa, a realidade é que ela justificou o terrorismo”, disse Villarruel sobre Carlotto, recentemente.

Estela de Carlotto, aliás, esteve presente ao ato de repúdio promovido na última segunda. Lá, referiu-se a Villarruel como “uma mentirosa e uma pessoa má”. Oficialmente, o grupo Avós da Praça de Maio se manifestou, através de nota, sobre os posicionamentos da candidata à vice na chapa de Milei.

Para o grupo, a posição de Villarruel é “uma provocação para ganhar notoriedade em questões superadas pela sociedade argentina e validadas pela justiça nacional e internacional”. O grupo considera que o discurso da candidata da extrema direita “leva ao pior da história” argentina, ao tentar “semear confusão e promover o ódio entre os argentinos”.

Sem se referir diretamente à chapa Milei-Villarruel, o presidente da Argentina, Alberto Fernández, tratou do tema na última segunda-feira. Para ele, a postura indica negacionismo em relação à ditadura militar.

“Não é um momento fácil, mas, nos momentos difíceis, fala-se a verdade. Não somos negacionistas da situação econômica, das mudanças climáticas, da ditadura que esta nação viveu. Os negacionistas são outros, aqueles que falam sobre liberdade”, pontuou Fernández, cujo mandato vai até o final do ano. 

Apesar de ser a responsável por um projeto de lei que pretende criar o “Dia Nacional das Vítimas do Terrorismo na Argentina” e de ter, inclusive, escritos dois livros em que compara a violência da ditadura à luta contra o regime, Villarruel nega que seja uma negacionista da ditadura. “Na Argentina, se você defende certas ideais, você é satanás”, sintetizou em entrevista recente.

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