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Os dilemas da eleição e o que esperar de um eventual governo Milei, segundo cientistas argentinos

Faltando dois meses para a disputa presidencial no país, CartaCapital ouviu os cientistas políticos Andrés Malamud e Sergio Morresi sobre o estado atual da sociedade argentina

O ultradireitista Javier Milei, candidato à Presidência da Argentina. Foto: Alejandro Pagni/AFP
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Um país com inflação em alta, moeda desvalorizada e sucessivos fracassos na tentativa de estancar a crise econômica. Uma sociedade conhecida pela marca do antagonismo político e por ter resolvido, diferentemente do Brasil, suas questões com o autoritarismo militar – afastando, já há bastante tempo, o Exército da política.

Eis a Argentina às vésperas das eleições que definirão quem sucede o presidente Alberto Fernández, que ocorrem entre outubro e novembro.

A disputa se centra em três postulantes: o ultraliberal Javier Milei; o ministro da Economia, Sergio Massa; e a candidata apoiada pelo ex-presidente Mauricio Macri, Patricia Bullrich.

Milei, que lidera as pesquisas de intenção de votos, compartilha do mesmo apelo anti-sistema que marcou a ascensão política do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Lá como cá, a crítica histriônica às elites políticas e intelectuais seduzem uma massa empobrecida e descrente da política tradicional. 

Esses e outros fatores põem Bolsonaro e Milei como outsiders, ou seja, figuras de “fora do sistema”. Muito embora Milei esteja mais para outsider que Bolsonaro, que acumulou décadas de presença no Congresso antes de se tornar presidente.

É o que aponta o professor argentino Andrés Malamud, cientista político pela Universidade de Buenos Aires e pesquisador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. “Milei é o verdadeiro outsider, Bolsonaro é apenas um dissidente”. Em termos de liderança e ideologia, completa, Milei é “ao mesmo tempo, Bolsonaro e Olavo de Carvalho”. 

O cientista político argentino Sergio Morresi, doutor em Ciência Política pela USP e professor da Universidad Nacional del Litoral argentina, aponta outra diferença: “Não há, em Javier Milei, um apelo claro ao nativismo, o que é típico em outras direitas radicais.”

Segundo o professor Morresi, a ascensão de Milei reflete a insatisfação da população argentina com as condições econômicas, mas, também, uma característica local. “A relação da população argentina com as elites políticas é de muito estranhamento, certo distanciamento e desapego aos políticos profissionais”, observa. “O desapego é compreensível, depois de vários anos de insatisfação, tanto no sentido econômico como sobre os serviços públicos que o Estado presta. Esse é um fator importantíssimo para compreendê-lo.

Outro fator interno, no caso da Argentina, é o peronismo, o movimento inspirado pelo legado de Juan Domingo Perón, militar e presidente da Argentina ao longo das décadas de 40 e 70. Não é fácil encontrar um paralelo do peronismo no Brasil, mas fato é que, de modo marcante, a disputa política e ideológica na Argentina se divide entre peronistas e anti-peronistas. 

Para Morresi, porém, “o anti-peronismo de Milei não é claro. Parece mais um anti-esquerdismo, que tem uma dimensão contra o kirchnerismo, mas não contra a experiência peronista, no geral. Isso se nota, por exemplo, na reivindicação que Milei fez à administração de Carlos Menem [um peronista de viés mais liberal, que governou o país entre 1989 e 1999]”.

As dificuldades de um eventual governo Milei

Javier Milei e suas promessas surpreendem agentes econômicos, internacionalistas e a própria imprensa sul-americana. Andrés Malamud e Sergio Morresi são taxativos a respeito das poucas condições de governabilidade que terá Milei, caso seja eleito.

“Milei carece do apoio das Forças Armadas e de grupos econômicos relevantes”, aponta Malamud. As duas coligações tradicionais, completa ele, manterão a maioria dos assentos parlamentares, e Milei deverá pactuar com elas se quiser governar.

Morresi reforça a “incógnita” em relação ao apoio que pode receber Milei caso seja eleito. “Ele não tem, até o momento, o apoio do que se costuma chamar de ‘forças vivas’ da sociedade: sindicatos, associações empresariais… Mesmo com uma grande votação, ele terá poucos deputados e senadores. Além de não ter apoio dos governadores”, analisa Morresi. O pesquisador pondera, contudo, que o apoio organizado de empresários a Milei pode ocorrer caso ele firme alianças com a coalizão macrista.

Na Argentina, contudo, diferentemente do Brasil, o apoio das alas militares não é tão determinante para o sucesso de um governo presidencial.

“Na Argentina, o regime acabou por um colapso. Dessa forma, os militares não deixaram herdeiros, não houve legado”, explica Morresi. 

Ele destaca, porém, que a candidatura de Milei vem tendo apoio da chamada “familiar militar” argentina. O apoio é direcionado, principalmente, a Victoria Villarruel, candidata à vice na chapa de Milei, que defende princípios ligados à direita e não condena abertamente a ditadura argentina.

Com um novo presidente, como ficariam as relações entre Brasil e Argentina?

A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil (só ficando atrás da China e dos Estados Unidos). O Brasil, por sua vez, é o principal parceiro comercial da Argentina.

O intercâmbio é também humano. Muitos são, também, os brasileiros que moram no país vizinho: 90,3 mil, segundo o levantamento mais recente do Itamaraty.

Para Andrés Malamud, “as relações Argentina-Brasil estão determinadas pela estrutura econômica: ambos exportam eficientemente recursos naturais para fora da região, mas a sua produção industrial não é competitiva internacionalmente, e só pode exportar para os vizinhos mediante cotas protegidas de mercado”. 

Ele é cético sobre a chance de Milei partir para um rompimento de relações com o Brasil. “Assim como Bolsonaro não conseguiu cortar laços com a China, Milei não conseguiria cortar com o Brasil”. Outro ponto que poderá estar na pauta entre o próximo mandatário argentino e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é a possibilidade de se criar uma moeda comum para transações entre os dois países. Para Malamud, a ideia “é um delírio”, de modo que, segundo o professor, “o que pode existir são mecanismos regionais de compensação de pagamentos”.

Morresi traça diferentes cenários, a depender de quem vencer as eleições. “No caso de Massa, ele expressa uma vontade de aprofundar a aproximação entre os dois países, com fortalecimento do Mercosul e ingresso no Brics“, aponta. O convite para a Argentina ingressar no Brics, capitaneado por Lula, foi rechaçado pela oposicionista Bullrich. Para Morresi, a declaração imediata de Bullrich “não parece ir além de um discurso de campanha, pois os argumentos não são racionais. Há uma contradição entre o que sua aliança política fez no passado e o que propõe agora”.

Já sobre o futuro das relações entre Brasil e Argentina em caso de vitória de Milei, Morresi hesita. O discurso do ultraliberal, resume, “não pressagia um fortalecimento das relações”.

A economia, outra incógnita

Embora a Argentina viva, no momento, um pico de inflação, este é um problema estrutural que prejudica há pelo menos duas décadas a economia do país. Uma economia inflacionária exige inúmeras intervenções, dos mais diferentes governos – o que, ano após ano, corrói a renda da maior parte dos argentinos, especialmente aqueles que moram nas regiões mais pobres. 

Malamud é direto: “Condução econômica é o que não há na Argentina“, diz, citando o atual governo.

“O fato de o candidato presidencial do governo ser o ministro da Economia [Sergio Massa] também não ajuda”, completa. As mais recentes pesquisas mostram Massa ainda no páreo, mas amargando um elevado patamar de rejeição.

Sergio Morresi também atribui à gestão Fernandez uma parcela de responsabilidade sobre a crise econômica atual, mas destaca que a crise não resulta apenas do crescimento da inflação. “Isso começou, pelo menos, há dez anos, no final do governo Cristina Kirchner“, aponta, reconhecendo que problemas como a pandemia e a grave seca sobre o país agudizam a crise. “Esse governo, no meu modo de ver, é bastante ruim. Os anteriores, também.”

A última vez em que a inflação argentina ficou abaixo dos dois dígitos foi quase uma década atrás, em julho de 2012, quando o índice anual chegou a 9,9%o. Em julho de 2023, a inflação atingiu um nível estratosférico de 113,4% no acumulado de 12 meses. Em paralelo, o país sofre para pagar um empréstimo de 44,5 bilhões de dólares ao FMI. O acordo foi firmado ainda na gestão Macri.

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