Diversidade

Como o número 108 e um caso brutal explicam a homofobia no Paraguai

Referência a um episódio ocorrido na ditadura voltou à tona com a reação homofóbica de um senador; o País é um dos mais hostis da América Latina para a população LGBT+

108 homens gays ou apontados como tal foram torturados e presos em meio às investigações pela morte do jornalista Bernardo Aranda, encontrado queimado em sua cama (Reprodução/ABC Color)
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Há mais de 50 anos, o número 108 se tornou gíria no Paraguai para se referir à comunidade LGBT+. A expressão, que remete um dos mais graves casos de perseguição em razão da orientação sexual ocorridos na América Latina, voltou às manchetes do país na última semana, logo na sequência do Mês do Orgulho, após a recusa do senador Dionisio Amarilla em aceitar a designação do número 108 na porta de seu gabinete, reacendendo o debate sobre o macabro episódio num dos países mais hostis da região para a diversidade sexual.

Em 1959, sob a vigência da ditadura militar, 108 homens gays ou apontados como tal foram torturados e presos em meio às investigações pela morte do jornalista Bernardo Aranda, encontrado queimado em sua cama. Conforme a linha adotada pelas autoridades e nunca comprovada, o crime como autor um homem gay vinculado a uma ‘seita de imorais’

O pesquisador Erwing Szokol, ativista LGBT+, vê uma chocante semelhança entre o estado atual dos direitos LGBT+ no Paraguai e o episódio dos 108 homens torturados. “Os discursos de ódio de 1950 se repetem”. Apoiadas no machismo e no nacionalismo, reflete ele, essas narrativas criam pânico sobre uma suposta ameaça externa que iria “destruir a família, a juventude, a inverter valores”. Do grêmio gay dos anos 50 a uma suposta agenda gay na atualidade, o tom conspiratório e preconceituoso permanece. “O que muda é somente a estética.”

Se a perseguição foi instrumento recorrente na ditadura paraguaia, a redemocratização – iniciada apenas nos anos 90 – se caracteriza por um grande vazio legal em matéria de direitos. O casamento e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo permanece proibido. Segundo dados de 2019, 70% dos paraguaios viam gays, lésbicas, travestis e pessoas trans como os grupos mais expostos à discriminação no país. 

“O mesmo Partido Colorado que liderou o regime militar permaneceu no poder nos anos seguintes, garantindo impunidade aos repressores”, destaca a advogada Michi Moragas. “Estamos falando de um dos países mais conservadores da região, que ainda não estabeleceu políticas básicas de direitos humanos. O artigo de nossa Constituição proibindo a não discriminação não encontra respaldo em mecanismos que levem à efetividade do que está escrito.”

O censo mais recente do Paraguai, realizado em 2022, não teve perguntas sobre identidade de gênero ou orientação sexual. As pequenas conquistas obtidas pela comunidade se resumem ao emprego do nome social para pacientes em atendimentos na área da saúde e da assistência social, mas também nessas esferas inexistem estatísticas. “Se o Estado não toma a decisão de gerar dados, a discriminação e a violência continuarão aumentando, impossibilitando a elaboração de políticas capazes de reverter essa situação”, alerta o documento Direitos Humanos 2022, assinado por diferentes coletivos da sociedade civil, críticos ao que classificam de “Estado negador”.

Nem um passo à frente

Parte do eleitorado conservador não vê razão para qualquer mudança de panorama. “Essas discussões só servem para distrair as pessoas”, reclama Guilhermina Vilasboa, empresária de Cidade do Leste. “Pouco importa se um senador quis mudar o número de seu gabinete, temos outras urgências que não passam por dar mais espaço a minorias.”

A senadora Kattya González, liderança emergente, reivindicou para si o gabinete 108, em respeito à carga histórica do fato – mas deixou claro ser contra reformas. “Infelizmente, a parlamentar recorre ao pinkwashing. Suaviza o discurso de ódio, mas na hora da verdade não se posiciona a favor de nossos direitos”, critica o artista David González.

O domínio da direita na última eleição presidencial deixa pouca margem para reivindicações dos movimentos sociais, sob risco de mais retrocessos. O presidente Santiago Peña postou-se contra reformas inclusivas – seguindo a linha dos colorados, muitos com posições ainda mais radicais. O ex-presidente Horacio Cartes, que ainda dá as cartas no partido, chegou a declarar em entrevista que daria um tiro nos próprios testículos se tivesse um filho gay.

A força do reacionarismo e do lobby religioso também interfere na agenda parlamentar – com projetos prevendo, por exemplo, a proibição da ideologia de gênero. Esse setor já havia conseguido brecar a reforma educacional nacional ao denunciar suposta vinculação com uma ‘pauta globalista’, apavorando pais e mães com notícias falsas. 

Entidades denunciam ainda a existência de terapias de conversão sexual, muitas vezes realizadas dentro de igrejas. “A lei de saúde mental proíbe, mas não há ação institucional para combater essas práticas inumanas e degradantes”, afirma Szokol. Sem apoio do Estado, resta aos movimentos LGBT+ se organizarem por conta própria, em casas de referência independentes e espaços alternativos para denúncias e busca de auxílio. “Nossas organizações estão acostumados a esse lugar de vulnerabilidade, o que nos leva a uma gestão coletiva.”

Enquanto isso, a lista dos 108, inclusive com a inclusão de outros nomes ao longo do regime, permanece em sigilo no chamado ‘arquivo do terror’, que reúne documentos da ditadura. Mesmo sem o conhecimento da identidade dos citados, o 108 nunca será somente um número e sim um símbolo de violência, mas também de orgulho e resistência na vida de muitos cidadãos do Paraguai.

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