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Chance histórica

Pela primeira vez, um candidato progressista aproxima-se da vitória nas urnas. O clima é tenso no país

Mudança. Petro mantém a campanha, mas denuncia as ameaças. Duque, afilhado de Uribe, é um absoluto fracasso - Imagem: Marcel Crozet/ILO e Colombia Humana 2022
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No início da noite do domingo 22, Gustavo Petro subiu ao palanque rodeado por cerca de 30 mil apoiadores entusiasmados e postou-se atrás dos escudos à prova de balas portados por dois seguranças. Logo falaria por 1h20 num púlpito blindado, provavelmente vestido, por baixo da camisa, com um colete à prova de balas utilizado em outras aparições públicas. A uma semana do pleito, o candidato favorito à Presidência da Colômbia encerrava sua campanha na Praça Bolívar, área histórica de 14 mil metros quadrados no centro de Bogotá, num clima de tensões e ameaças crescentes.

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, cinco candidatos à Presidência, todos de oposição às oligarquias dominantes, foram assassinados. O caso mais expressivo é o do líder nacionalista Jorge Eliécer Gaitán, abatido ao sair de um almoço no centro da capital, em 9 de abril de 1948. O crime suscitou uma inédita onda de protestos e depredações populares, que se arrastaram por vários dias nas cidades mais importantes do país. O episódio se tornaria conhecido internacionalmente como bogotazo e marcaria a chegada às cidades da brutalidade das disputas pela terra no campo.

Escaldado na história e em sua experiência pessoal, Petro passou a denunciar ameaças de morte e a insinuar uma possível aliança de militares com bandos armados, a partir do fim de março. As declarações lhe valeram grosseira réplica do comandante do exército, general ­Eduardo Zapateiro. Acusando o candidato de fazer “politicagem” em uma série de tuítes, o militar foi secundado pelo presidente Ivan Duque e pelo ministro da Defesa, Diogo Molano, que o chamou de mentiroso. A tais ataques se somam inúmeros relatos de assédio de empresários a seus trabalhadores para que não escolham o candidato progressista, sob pena de empresas fecharem e empregos secarem.

Para se ter uma ideia da brutalidade das disputas políticas no país, vale lembrar que, segundo a Unidade de Investigação e Acusação da Jurisdição Especial para a Paz, 904 líderes sociais e defensores dos direitos humanos foram assassinados entre dezembro de 2016 e o fim de 2020.

O nervosismo escancarado pela direita local pode ser explicado diante de pesados interesses geopolíticos. A Colômbia é a principal aliada dos Estados Unidos na América do Sul. Em 1999, os presidentes Bill Clinton e Andrés Pastrana firmaram o Plano Colômbia, programa de investimentos em segurança que envolvia a instalação e modernização de sete bases militares comandadas por ­Washington. Entre 2002 e 2010, o país foi governado por ­Álvaro ­Uribe, de extrema-direita, que se valeu da aliança para incrementar a repressão interna à guerrilha e a movimentos sociais e a se colocar regionalmente como contraponto ao governo de ­Hugo Chávez, da Venezuela. No penúltimo ano de sua gestão, Uribe firmou novo pacto militar, no âmbito da Guerra ao Terror desatada pela Casa Branca. E, em maio de 2018, o presidente Juán ­Manuel dos Santos, ex-aliado de ­Uribe, assinou o ingresso do país como “parceiro global” da Organização do Tratado do Atlântico Norte. Duque, atual presidente, é fiel seguidor de Uribe em seu viés repressivo. Assim, uma troca de comando na ­Casa de Nariño, sede do governo nacional, pode apresentar ruídos numa aliança estratégica para ­Washington.

Gustavo Petro, ex-guerrilheiro, prega uma guinada no modelo econômico

O desempenho de Petro, economista de 62 anos, ex-guerrilheiro, ex-prefeito de Bogotá e atual senador, e de sua vice, a advogada e ativista afrodescendente ­Francia Márquez, 39 anos, é inédito. Nenhum candidato com pálidas tinturas à esquerda jamais chegou tão bem colocado a uma ­disputa nacional. Segundo as últimas sondagens, a coalizão Pacto ­Histórico alcança 41,5% na preferência popular. Bem abaixo, com 25,3%, está ­Federico ­Fico ­Gutierrez, ex-prefeito de Medellín, da coalizão de direita Equipe por Colômbia. E com 17,9% vem Rodolfo Hernández, empresário e ­ex-prefeito de Bucaramanga.

Toda a tática conservadora consiste em levar o enfrentamento ao segundo turno, previsto para 19 de junho, na esperança de que um somatório de forças possa alterar o favoritismo da esquerda.

Uribe não esconde sua preferência por Gutierrez. O desgaste do afilhado Duque torna, porém, qualquer aproximação negativa aos olhos do eleitorado. Tal situação levou o candidato oficial, Óscar ­Zuluaga, a desistir de sua postulação ainda em março. O uribismo, vertente política dominante nas duas últimas décadas, chega às eleições sem um herdeiro assumido, depois de uma contração do PIB da ordem de 6,8% em 2020, e de cerca de 140 mil mortes durante a pandemia de Covid-19.

O descontentamento popular manifestou-se em ao menos duas oportunidades ao longo do último ano. A primeira deu-se nos maciços protestos populares que tomaram a capital e várias cidades do interior entre abril e junho de 2021. O gatilho foi o envio ao Congresso de um projeto de reforma tributária por parte do governo. Se aprovadas, as medidas resultariam em aumentos de impostos, em especial sobre gêneros de primeira necessidade, que atingiriam uma sociedade castigada por 14% de desemprego e uma informalidade que atinge metade da população economicamente ativa. A pesada repressão das polícias e do exército resultou em 52 mortos e mais de 3 mil feridos.

A segunda demonstração de descontentamento aconteceu nas eleições parlamentares, no início de março. A aliança Pacto Histórico praticamente empatou com liberais e conservadores na distribuição de cadeiras na Câmara e no Senado, num resultado sem paralelo na história colombiana.

O programa de governo de Petro é centrado na democratização da terra – reforma agrária e urbana –, na garantia de direitos para pequenos produtores, na expansão do crédito, em políticas de proteção a setores vulneráveis, em especial as mulheres, na superação de uma economia exportadora de commodities para uma economia industrial e na revisão de tratados de livre-comércio, entre outros pontos. A dada altura, o programa explicita: “O Estado exercerá suas funções de liderança para impulsionar um processo de industrialização democrático e responsável, capaz de gerar capacidades para o aumento da produtividade, do emprego, da renda e das cadeias produtivas necessárias para uma transição social e ecológica que estimule a produção da e para a vida”.

Os resultados das eleições colombianas tendem a repercutir fortemente no âmbito internacional. Elas serão um importante indicador de rumos num continente que ensaia nova virada progressista, depois de um surto regressivo que tem sua maior marca no governo Bolsonaro. •


*Professor de Relações Internacionais da UFABC e coordenador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1210 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Chance histórica “

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