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Brasil analisa se vale insistir em nova resolução na ONU; chanceler teme que conflito se espalhe

Após o veto dos EUA, diplomatas seguem consulta com outros países para uma saída que possa fazer parar o conflito em Gaza

O chanceler Mauro Vieira representa o Brasil no Conselho de Segurança da ONU. Foto: ANGELA WEISS / AFP
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Há uma discussão interna no Brasil, inclusive política, se vale o esforço de o país tentar aprovar uma nova resolução sobre o conflito em Gaza no Conselho de Segurança da ONU, mais voltada às vítimas e aos reféns, ou se o país já fez a sua parte com o texto vetado pelos Estados Unidos, nessa quarta-feira 18. O Brasil, que este mês ocupa a presidência rotativa do Conselho de Segurança, defende um discurso com foco nas causas humanitárias, reflete sobre um documento aprovado pela maioria dos atuais integrantes do órgão e, ao mesmo tempo, coordena a retirada de vários brasileiros da região de conflito.

“Nós temos que esperar uma circunstância nova, um novo momento. Se acontecer até o final do mês de outubro, nós tomaremos outra vez a iniciativa e consultaremos todos para construir uma posição comum”, disse o ministro de Relações Internacionais, Mauro Vieira, em audiência no Senado.

O pesquisador em Relações Internacionais da Unicamp Gustavo Blum avalia que, mesmo com a derrota da resolução, a movimentação brasileira representa uma vitória para a diplomacia do país. “Se pensarmos que, nos últimos anos, o país foi tido como um pária internacional e agora apresentou sobretudo uma preocupação com o desastre humanitário, com a vida de crianças, mulheres, idosos que estão sofrendo na região, isso pode ser considerado um grande resultado, mesmo que a resolução não tenha passado – até mesmo pelo placar, com um único voto contra”, salienta. “E não foi um voto contra o Brasil, mas a postura dos Estados Unidos como representante, por procuração dos interesses de Israel no Conselho”, afirmou à RFI.

Blum destaca, ainda, que a experiência brasileira com crises internacionais é reconhecida pelos vizinhos regionais, que pediram para o país ajudar no repatriamento de seus nacionais da Argentina, do Uruguai e do Chile, “o que representa que a imagem [do Brasil] se consolida”, completou Blum.

A diplomacia do governo Lula entende que o papel de destaque que o país procura na cena internacional passa pela defesa da neutralidade em conflitos, como buscou na eclosão da guerra da Ucrânia e também agora, no Oriente Médio. A resolução apresentada pelo país repudia e condena ações que considera hediondas e terroristas do Hamas, embora não aplique os mesmos adjetivos diretamente ao grupo. Na outra ponta, o momento delicado levou o governo a demitir o presidente da Empresa Brasileira de Comunicação, Helio Doyle, que compartilhou uma postagem criticando defensores de Israel.

“A nossa preocupação não foi em tomar posição política, porque inclusive o Brasil se dá bem com os dois lados, com Israel e com a Palestina. Graças a isso, inclusive, conseguimos ter diálogo com os dois lados, um diálogo muito fluido para conseguir retirar os brasileiros de lá”, afirmou o chanceler brasileiro.

Mauro Vieira relatou que nos últimos três dias, a diplomacia brasileira contatou os países integrantes do Conselho de Segurança a fim de fechar um documento que contemplasse a visão da maioria. “Inúmeras consultas, de forma a acomodar uma linguagem que pudesse ser aceita por todos e que atingisse o objetivo da resolução, que era a assistência humanitária. E se a gente chega no Conselho com uma proposta dessa, de extinguir o Hamas – nem sei como isso seria feito – e de entregar Gaza à administração da ONU, como foi citado aqui, seria bloqueado imediatamente. Tudo isso mostra que é preciso reformular o Conselho de Segurança”, frisou.

O território é ocupado principalmente por palestinos, mas o controle do que entra e sai depende de Israel. O acordo em vigor prevê ingresso de comida, água e remédios, desde que não sejam destinados a integrantes do Hamas.

O Brasil enviou kits com esses itens, além de 40 purificadores de água, já que Gaza não está abastecida com água potável. A usina que retira água e a torna potável para milhões de pessoas em Gaza está sem energia para funcionar. Até o momento, a lista de material autorizado não contempla combustível.

Risco de ‘ampliação do conflito’

A liberação dessa ajuda não significa abertura para escoar pessoas, como o grupo de 26 brasileiros que aguardam há dias para cruzar a fronteira, numa negociação delicada e que não tem data para terminar, reconheceu o chanceler Mauro Vieira. Também não representa um avanço real para acabar com os ataques.

“Eu acho que temos riscos enormes de ampliação do conflito, com possibilidade de transbordamento dessa situação para os países próximos, com reflexos terríveis para o mundo. Proximidade da Europa, diásporas tanto palestina, como israelense, e também libanesa no Brasil, nos Estados Unidos, em todos os países. Isso seria realmente uma situação de grande aflição internacional. Eu espero que haja uma certa contenção, mas acho que esse conflito ainda será longo”, teme Vieira.

O pesquisador internacional Gustavo Blum acredita que a situação na região depende, entre outros fatores, dos objetivos de Israel na parte ocupada por palestinos e da política interna do país. “O governo de Benjamin Netanyahu tem se tornado um refém, o que não o exime de culpa, dos partidos de extrema-direita que formam a base de governo dele, e são ligados a essas ocupações ilegais e ao avanço dessa prática de assentamentos judaicos em territórios palestinos. O que acaba acontecendo é que Benjamin Netanyahu tem apostado nesses grupos que demograficamente têm crescido mais que os judeus laicos, portanto têm uma base territorial maior”, comenta.

“A dinâmica do conflito tem indicado que o plano do governo israelense é de enviar a população palestina da Faixa de Gaza para o Egito, para a Península do Sinai. É algo que o próprio presidente do Egito já se declarou publicamente contra. Isso constitui um crime contra a humanidade, que é um crime de deslocação forçada. E Israel não divulga qual é o seu plano após a potencial eliminação do Hamas. Mais recentemente já se fala, inclusive, de partes do Líbano e por aí vai”, acrescenta Blum.

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