Entrevistas

Ricupero: Apesar do veto na ONU, Brasil se engrandece – e os EUA é que devem se envergonhar

Para o diplomata e ex-ministro, erosão do sistema internacional aproxima o mundo do modelo pré-Nações Unidas

A embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield, em 18 de outubro de 2023. Foto: Bryan R. Smith/AFP
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Apesar do veto à sua proposta de resolução sobre o conflito entre Israel e Hamas no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil se engrandece diplomaticamente e esbarra apenas no apoio incondicional dos Estados Unidos ao governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

A avaliação é de Rubens Ricupero, diplomata, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente sob o governo de Itamar Franco e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento.

O texto liderado pelo Brasil defendia uma pausa nos bombardeios para viabilizar o acesso humanitário à Faixa de Gaza, a fim de socorrer os civis. Também condenava expressamente os “odiosos ataques terroristas” do Hamas e ressaltava que “os civis em Israel e no território palestino ocupado, incluindo Jerusalém Oriental, devem ser protegidos, de acordo com a legislação internacional”.

A embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Linda Thomas-Greenfield, porém, disse que o país está “decepcionado” e atribibuiu o veto ao fato de a resolução não mencionar “os direitos de autodefesa de Israel”.

O Brasil não é um membro permanente do Conselho de Segurança, mas ocupa neste mês a presidência rotativa do grupo. A resolução teve 12 votos a favor, o veto dos americanos e duas abstenções, incluindo a Rússia. Cinco países têm direito de veto: EUA, China, Rússia, França e Reino Unido.

Leia os destaques da entrevista concedida por Rubens Ricupero a CartaCapital nesta quarta-feira 18:

CartaCapital: Como avalia o veto norte-americano à resolução do Brasil?

Rubens Ricupero: A derrota da resolução representa, na verdade, uma vitória moral. O Brasil sai engrandecido do episódio, porque apresentou um texto equilibrado, que cobria todos os pontos principais. Condenava o Hamas em termos fortes, mas também condenava todos os atentados contra civis e pregava o que é absolutamente urgente: uma pausa humanitária para o socorro da população.

Creio que o bombardeio do hospital, seja lá quem for o culpado, prova o ponto da resolução brasileira: quanto mais demorar para haver essa pausa, mais as vitimas civis vão se multiplicar.

O veto representa, obviamente, a postura dos Estados Unidos, que é de solidariedade absoluta a Israel, como tem sido sempre. Não é uma surpresa. Mas não creio que moralmente, eles tenham muito como justificar essa atitude que tomaram. É uma atitude de poder político, de grande potência. A resolução vai encontrar no mundo inteiro muito apoio, mesmo não tendo passado.

O Brasil fez o que pode. Ele não pode mais que isso, ninguém pode. O Brasil, dentro daquilo que podia fazer, fez um gesto de engrandecimento moral. Ninguém pode jogar pedra no Brasil. Ao contrário, os outros é que devem ficar um tanto envergonhados de ter de vetar uma resolução como essa. Fazem isso porque são solidários à ação militar que Israel prepara.

A solução, cedo ou tarde, terá de ser a dos dois Estados. Não sou capaz de vislumbrar outra solução

CC: Após o ataque ao hospital em Gaza, cresce a tensão em outros países, como no Líbano. É real o risco de o conflito se espalhar?

RR: Eu acho que esta crise é incomparavelmente mais grave do que as que ocorreram no passado, por várias circunstâncias. A primeira é que a situação geopolítica mundial é muito pior do que jamais foi, por causa da guerra na Ucrânia, de uma quase guerra fria entre Estados Unidos e China, da incapacidade de qualquer consenso no combate ao aquecimento global… Estão se multiplicando em toda parte os sinais de uma erosão do sistema internacional, cada vez mais paralisado por causa desse alto grau de antagonismo entre as grandes potências.

Além disso, outro fator que complica muito é que os dois adversários diretos, Hamas e governo de Netanyahu, são os piores governos que se poderia imaginar. São dois governos de extremistas que não têm nenhum interesse de chegar a um acordo moderado.

No caso de Israel, uma boa parte da opinião pública culpa o primeiro-ministro por boa parte das condições que tornaram possível esse ataque, e tudo isso torna a situação muito grave. Vemos um mundo em descontrole. É difícil dizer até que ponto vai haver uma participação de outros contendores. Acho que, embora possível, não é provável, porque dos países árabes, por mais indignação que tenham, nenhum tem preparo militar e disposição de entrar em um conflito agora.

O Egito, por exemplo, já saiu derrotado de uma guerra 50 anos atrás. É um país que tenta preservar sua segurança, mas desta maneira, fechando a fronteira. Não creio que eles vão se envolver em uma guerra.

A Arábia Saudita não é um país que tenha força para isso, limita-se a condenar, como fez agora [no caso do bombardeio ao hospital de Gaza]. A Síria é um país que está ainda muito dividido, a guerra civil nem terminou. O Iraque também saiu liquidado da guerra.

Os israelenses devem obter um êxito maior ou menor, mas não acredito que definitivo

Os antigos países árabes do Eixo de Resistência foram sendo liquidados um por um. Egito, Síria, Iraque, a própria Líbia no passado. Hoje em dia, do Eixo, o único país mais disposto a uma atitude drástica seria o Irã, mas o Irã dificilmente tomará alguma iniciativa desse tipo, mesmo porque não tem fronteiras imediatas com a região conflagrada.

O Irã tem influência por causa do apoio, econômico e em armas, ao Hamas e ao Hezbollah, mas não é um limítrofe, não é o Líbano, não é a Síria, não é o Egito.

Por outro lado, os americanos, não por outra razão, deslocaram porta-aviões e toda a força-tarefa mais moderna que eles têm para as águas próximas. Se um desses países, por exemplo o Irã, ousar qualquer ação, vai receber uma resposta fulminante dos americanos.

Acredito que vai haver muita pressão na rua, muita agitação. Mas os regimes árabes não obedecem à opinião pública – ao contrário, eles temem a opinião pública, desde o fracasso da Primavera Árabe.

Registro de satélite mostra as consequências do ataque aéreo contracontra o Hospital Al-Ahli, na Faixa de Gaza. Foto: Satellite image ©2023 Maxar Technologies/AFP

CC: E o papel de Rússia e China?

RR: Também não vejo Rússia e China com interesse em desencadear um conflito. A Rússia sai ganhando com isso: enquanto houver esse conflito no Oriente Médio, desviará a atenção da Ucrânia, diminuindo até a possibilidade de apoio americano com armas. E a China tem a sua postura tradicional, de muitos anos, de não se envolver diretamente e deixar que os outros se enfraqueçam em conflitos.

Não acredito que haja uma probabilidade [de envolvimento de outros países]. É um perigo, porque em um mundo sem controle pode acontecer algo que não seja desejado, um incidente grave, como o de ontem, no hospital. Pode haver coisas mais graves ainda.

Mas, voltando ao episódio da resolução, acho que o Brasil se saiu muito bem, conduziu com muita serenidade, foi capaz de ouvir, de adaptar o texto. O fato de ter sido rejeitado mostra que no momento talvez nenhuma resolução possa ser aprovada, devido à distância que separa as potências presentes nesse conflito.

CC: Diante da paralisia do Conselho de Segurança da ONU, quais atores podem, então, buscar uma mediação concreta do conflito?

RR: Quando a ONU foi fundada, em 1945, já se sabia que o direito de veto no Conselho de Segurança era uma espécie de pecado original, que iria condenar o conselho à paralisia sempre que as grandes potências não estivessem de acordo. Sem o direito de veto, porém, nem Estados Unidos, nem União Soviética teriam admitido a existência da ONU.

Quem poderá desempenhar a mediação? Esse é o problema. Na ausência de um organismo internacional capaz de ter uma atuação efetiva, o mundo acaba naquela situação que ocorria antes da existência das Nações Unidas. Antes da 1ª Guerra, tínhamos um mundo em que a última palavra era do poder, das grandes potências, as quais só se deixavam orientar por seus próprios interesses nacionais, os mais egoístas que fossem. Isso levou a duas guerras mundiais.

Por isso se tem medo de que, à medida que o sistema internacional sofra essa erosão continua, cada vez nos aproximemos mais do mundo tal como ele era antes de 1914, em que o que resta é o poder, dos Estados Unidos, da Rússia, da China, daqueles que têm armas atômicas. Como elas estão em posições antagônicas, não há como obter uma decisão.

CC: O que deve ocorrer, então, na Faixa de Gaza?

RR: Provavelmente, o que vai acontecer na Faixa de Gaza é que a operação israelense vai continuar, em algum momento vai haver uma invasão terrestre e vai haver muita gente morta, muitos civis. Os israelenses vão obter um êxito maior ou menor, mas não acredito que definitivo, porque não é a primeira vez que eles invadem.

E vai ser muito difícil imaginar o futuro daquela região, porque o próprio governo atual de Israel enfraqueceu a que poderia ser a alternativa, a Autoridade Palestina, do Mahmoud Abbas. Ele se desmoralizou mesmo por causa da ocupação israelense da margem ocidental, da aprovação de cada vez um número maior de colônias de povoamento, e a única esperança é se no futuro a Autoridade Palestina pudesse voltar a governar Gaza.

O Hamas surgiu como uma ala mais radical, que considerava a Autoridade Palestina pouco eficaz. E por que achava isso? Porque os iraelenses não permitiram também aquela saída da criação de dois Estados. A solução, cedo ou tarde, terá de ser a dos dois Estados. Não sou capaz de vislumbrar outra solução. Mas até isso acontecer, muito sofrimento e muita morte ocorrerão no mundo.

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