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Antidiplomacia bolsonarista deve ser responsabilizada pelo atraso nas vacinas, avalia embaixador

Com Índia, a questão é diplomática. E com a China, política. Em ambos os casos, o governo Bolsonaro deve ser considerado culpado

Bolsonaro e Ernesto Araújo (Foto: Valter Campanato/EBC) Ernesto Araujo. Foto: Valter Campanato/EBC
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A viabilidade de uma ampla campanha de vacinação contra a Covid-19 no Brasil passou a depender de uma das mais problemáticas agendas do governo de Jair Bolsonaro: as relações exteriores.

China e a Índia, duas potências orientais com relacionamentos diferentes com o governo brasileiro, mantêm sob custódia, respectivamente, os insumos para a produção das duas vacinas aprovadas para uso emergencial no Brasil e 2 milhões de doses do imunizante da AstraZeneca, que já deveriam estar em solo nacional se não fosse o fracasso da operação coordenada pelo chanceler Ernesto Araújo.

Na análise do diplomata Paulo Roberto de Almeida, os dois países devem colaborar, em breve, para que o prosseguimento da vacinação seja viável no Brasil. No entanto, fica um recado vindo especialmente da China, alvo preferido da bravata ideológica de Araújo em seus alinhamentos com a extrema-direita mundial: as relações estão estremecidas, e os chineses sabem bem qual é o lado mais forte da balança.

Almeida, que se considera um “dissidente” do Itamaraty, foi demitido, em 2019, da diretoria do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri), integrado ao Ministério, por publicar textos críticos em seu blog pessoal. Por esse motivo, acredita, está lotado no Arquivo da pasta. Ele também atua como professor de Economia Política na pós-graduação de Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

Na terça-feira 19, a Índia indicou países vizinhos prioritários para a exportação de vacinas produzidas em seu território – uma das maiores plantas farmacêuticas do mundo – e não citou o Brasil. Na lista, estão países vizinhos e aliados estratégicos do país.

Almeida afirma que a diplomacia indiana foi educada no trato com o Brasil, e que quaisquer ilusões de Bolsonaro com o primeiro-ministro Narendra Modi, também de direita, deveriam considerar o nacionalismo indiano. A vacinação no país asiático que tem mais de 1,3 bilhão de habitantes – acabou de começar. Exportar doses para o Brasil, portanto, não seria bem visto entre os indianos.

“O chanceler indiano sinalizou por três vezes que havia dificuldades em exportar a vacina. Ele foi muito diplomático, pois isso causaria um enorme problema para Modi no plano interno. O Modi recebeu Bolsonaro no dia da Independência indiana com todas as honras, mas ele é um nacionalista ao velho estilo. Não tem nada a ver com ‘anti-globalismo’ de Araújo.”, afirma o diplomata.

Com a China, o buraco é mais embaixo. Almeida lembra que, desde a campanha presidencial de 2018, ao visitar Taiwan – uma “província rebelde” aos olhos do Partido Comunista Chinês -, o presidente manda mensagens de afronta ao maior parceiro comercial do País.

“O caso da China é mais político, e o da Índia é uma inconveniência diplomática cometida pelo chanceler e pelo Bolsonaro. Com certeza, isso causou um imenso mal-estar na Índia que não se manifestou porque eles são grandes diplomatas e não cometeriam uma grosseria.”, diz Almeida. “Eles não são o Bolsonaro, que já brigou com o Macron, a mulher do Macron, o [presidente da Argentina] Alberto Fernández, o Evo Morales, Deus e o mundo”, analisa.

Nas ofensas a China, tem protagonismo Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que já brigou publicamente com o embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, pelas redes sociais.

Eduardo repetiu que o coronavírus era um “vírus chinês” e fez campanha contra o leilão do 5G com a participação da Huawei, empresa chinesa estratégica no setor. Em ambos os casos, Ernesto Araújo endossou o discurso do filho do presidente.

“A China atua politicamente em resposta. Até agora, foi muito leniente com o Brasil até pelas brigas comerciais que estava travando com os Estados Unidos”, diz o diplomata. A China separa a questão política da comercial, mas eles estão fazendo corpo mole para sinalizar ao Brasil que, se continuar assim, o País talvez sofra.”

 

Para ele, o grande divisor de águas” nas relações sino-brasileiras seria a proibição à participação da Huawei no leilão do 5G. Mas as críticas preconceituosas de Bolsonaro à “vacina chinesa” também provocaram forte repúdio das autoridades chinesas, afirma.

Almeida avalia ainda que, caso haja caos pela falta das doses da vacina contra a Covid, a “antidiplomacia” bolsonarista será diretamente responsável.

“Todo mundo importa ou toma remédio da Índia e da China. Precisou um inepto total como o Bolsonaro para causar um enorme preconceito contra os produtos chineses.”, ressalta.

“A China vai acabar fornecendo [os insumos], mas talvez demore mais um pouco para deixar os Bolsonaro desesperados. Quando acabar o estoque, pode haver cenas dramáticas dos hospitais. Houve um enorme fracasso diplomático que não é limitado ao contexto atual da pandemia, da vacina, é um fracasso diplomático desde o começo.”

Além das relações bilaterais estremecidas, há ainda a falta de coordenação com outros órgãos multilaterais que poderiam ter ajudado o Brasil em “inteligência sanitária e de saúde”, diz o ex-embaixador, referindo-se ao atraso do Ministério da Saúde em adquirir insumos como seringas e agulhas à tempo da vacinação.

Correção de rumos

Para corrigir os problemas, Bolsonaro aposta nas boas relações que o vice-presidente Hamilton Mourão tem com autoridades chinesas, afirmaram aliados do governo à jornalista Andreia Sadi, da Rede Globo.

O general faz parte da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação, a Cosban, e deve ser encarregado de “salvar a pátria” porque os “chineses não falam com o Araújo”, analisa o diplomata. “O governo de Bolsonaro faz tudo errado e, então, apela para soluções de expediente”.

Com a pandemia ainda crescente e uma longa campanha de vacinação pela frente, Paulo Roberto sugere que o Brasil reavalie suas posições com a China – apesar do novo governo dos Estados Unidos, comandado agora pelo democrata Joe Biden, que deve tentar conter a influência da China sobre as Américas.

“O que vai sobrar para o Biden da política externa de Trump é o mercantilismo americano, que responde a uma frustração dos órfãos da globalização, dos desempregados, ao sentimento de que a China não joga conforme as regras”, analisa. “O Biden foi acusado pelo Trump de ser aliado da China, e ele tem que provar que não é soft com eles.”

*O texto foi atualizado às 07h42 do dia 21/01 com a alteração de “ex-embaixador” para “embaixador”. Almeida apenas não atua na ativa, mas sim no Arquivo do Ministério. 

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