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A Venezuela, a Constituição e o Comando Sul

O que fará o general brasileiro integrado à divisão militar dos EUA neste momento de impasse no país vizinho?

Uma guerra civil a caminho na Venezuela (Foto: AFP)
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A cada dia que passa, a pressão sobre a Venezuela se avoluma. O noticiário internacional dá crescente ênfase à questão humanitária, em particular à ajuda que os Estados Unidos da América têm tentado fazer entrar em território venezuelano, à força se necessário.

O próprio presidente norte-americano, Donald Trump, não cansa de repetir que “todas as opções estão sobre a mesa”, o que no linguajar diplomático significa claramente que a ação militar não está descartada.

Não é mera coincidência que Trump tenha recebido há poucos dias o ultraconservador Iván Duque, presidente da Colômbia, rota mais provável de uma eventual intervenção.

De outra parte, segundo a mídia, os serviços de inteligência cubanos, em geral bem informados (foram eles que alertaram para o golpe de 2002), teriam detectado movimentação atípica de forças norte-americanas em torno das ilhas do Caribe.

Todos sabemos que considerações de natureza humanitária são frequentemente utilizadas para justificar a quebra do princípio (no nosso caso constitucional) da não intervenção e do respeito à soberania dos Estados.

Os ataques ao Iraque e à Líbia estão frescos na memória. E, como neles, não falta, no caso venezuelano, o ingrediente do petróleo, objeto de disputas geopolíticas entre as maiores potências do mundo.

E seria extrema ingenuidade supor que a “ajuda humanitária” enviada por Washington seja resultado de uma preocupação autêntica com as privações (reais, por certo) por que passa a população venezuelana.

Para começar, se o objetivo não fosse a “mudança de regime” (como no Iraque e na Líbia), os Estados Unidos, ao invés de abarrotar os depósitos de Cucuta unilateralmente, teriam pedido às Nações Unidas que negociassem com o atual governo venezuelano uma forma de fazer chegar os alimentos e remédios ao povo sofrido daquele país.

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Um dos princípios básicos da ajuda humanitária é a não instrumentalização da mesma com finalidades políticas, o que tem sido constantemente repetido por altos funcionários da ONU, bem como por ONGs, como a Cruz Vermelha, que atuam (sobretudo a segunda) de forma não politizada.

Ao ouvir um comentário de uma analista do Wilson Center, um dos muitos laboratórios de análise política que alimentam as decisões do governo norte-americano, não pude deixar de lembrar-me da situação iraquiana ao tempo em que servi como embaixador do Brasil nas Nações Unidas, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.

Sempre que lembrados dos efeitos devastadores das sanções (naquele caso aprovadas pelo Conselho de Segurança) sobre a população, os representantes de Washington alegavam: “A culpa é de Saddam (Hussein)”.

Guaidó conta com uma intervenção federal (Foto: Juan Barreto/AFP)

O mesmo raciocínio foi empregado agora pela analista citada. “A culpa é de Maduro”. E com isso não só se consegue apaziguar as consciências sobre o impacto das sanções, como se prepara o caminho, do ponto de vista moral, para as brutalidades inerentes a uma ação militar.

Longe de mim querer isentar o governo da Venezuela de boa dose de responsabilidade pela situação de penúria do país, seja pela imprevidência econômica em face das oscilações do preço do petróleo, seja pela incapacidade em encontrar uma solução razoável para as profundas divisões da sociedade venezuelana, que, diga-se de passagem, antecedem o governo Chávez.

Uma das maiores favelas do mundo, que tive oportunidade de ver, durante uma viagem, nos anos 1990, é a que se estende do litoral, onde fica o aeroporto, até Caracas.

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E o Brasil com isso? Será que assistiremos passivamente a uma ação armada em um país vizinho, que pode facilmente degenerar em uma guerra civil.

Sobre esse tipo de conflito, pode-se dizer que sempre se sabe como começa, mas nunca se sabe como acaba. Ou, pior ainda, coonestaremos com atitudes diplomáticas a invasão de um país sul-americano, seja diretamente, seja por interpostos atores.

Só o diálogo pode salvar a Venezuela e, por extensão, a América do Sul, do desastre de uma guerra civil ou de um governo sem legitimidade e sem lastro eleitoral, imposto de fora.

Não esqueçamos que o apoio ao regime change e a admissão do uso da força por Washington contaminam de maneira indelével qualquer ação contra o governo Maduro. Em um diálogo verdadeiro, todos terão que fazer concessões e não haverá lugar para expedientes destinados a ludibriar um lado ou outro.

O general Faria (último à direita) se integra às tropas dos EUA (Foto: Reprodução)

Por outro lado, a experiência demonstra que negociações, para serem bem-sucedidas, embora devam basear-se em princípios (respeito aos direitos humanos, por exemplo), não podem partir de uma conclusão a priori.

México, Uruguai, o SGONU e, por que não?, o papa Francisco, apoiados por personalidades internacionais insuspeitas e sem interesse nas riquezas do país, ainda podem evitar o derramamento de sangue dos nossos irmãos venezuelanos, com impacto direto para toda a região.

Neste quadro, em que as forças norte-americanas, por meio do seu Comando Sul, terão um papel preponderante, seja na inteligência, seja no planejamento, seja ainda nas operações propriamente ditas, que fará um general brasileiro integrado à estrutura operacional dessa poderosa divisão militar?

Pergunta cuja resposta demandaria uma nova coluna.

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