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Donald Trump, o fim do globalismo e a crise na Venezuela

O presidente dos EUA empurra a política externa do seu país de volta ao século XIX

Donald Trump insiste no muro na fronteira com o México (Foto: Nicholas Kamm/AFP)
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O cerne da política externa de Donald Trump é a crítica às normas multilaterais globais (o “globalismo”), criadas, difundidas e protegidas por sucessivos governos dos partidos Republicano e Democrata.

O consenso repousava na ideia de que a globalização capitalista, a promoção (seletiva) da democracia e os acordos de segurança regionais atendiam a interesses estratégicos e econômicos sistêmicos dos Estados Unidos, muito embora pudessem implicar em prejuízos sobre empresas e regiões incapazes de competir globalmente.

A crítica de Trump é que as normas globais limitam a soberania norte-americana, prejudicam firmas e trabalhadores industriais e resultam em instituições (ONU, OTAN, OMC etc.) cujos custos de manutenção recaem desproporcionalmente sobre o contribuinte dos EUA.

Trump não venceria no colégio eleitoral sem a atração de sua retórica antiglobalizante sobre o antigo eleitorado democrata nos estados no Midwest, composto por trabalhadores brancos ressentidos com a desindustrialização e com ascensão escolar e profissional de asiáticos, latinos, negros e mulheres.

Ao invés de repetir o globalismo, Trump propunha filtrar compromissos de acordo com critérios econômicos de custo-benefício. Usando métodos de avaliação típicos de seu império empresarial, propôs abandonar tratados que não trouxessem vantagens imediatas e renegociar outros para melhorar a relação custo-benefício.

Criticando a suposta fraqueza de Obama e confiando em sua autopropalada capacidade de negociação, Trump ameaçou retaliar parceiros que não se dispusessem a melhorar as vantagens americanas.

No primeiro dia como presidente, prometeu abandonar ou renegociar o NAFTA com Canadá e México e jogou no lixo (para alegria de russos e chineses, aliás) as “parcerias” continentais com a Europa e com a Ásia (TTIP – Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, e TPP – Parceria Transpacífico) negociadas por Barack Obama e Hillary Clinton.

Também saiu do Acordo do Clima de Paris, enquanto estimulou a extração de carvão e a revisão da proteção de parques nacionais (considerados santuários ecológicos) contra a mineração e a prospecção de petróleo.

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Do ponto de vista dos acordos regionais de segurança, procura extrair mais fundos dos parceiros para financiar bases norte-americanas na Europa, no Oriente Médio e no Leste Asiático e promete trazer para casa tropas na Síria, Afeganistão e Iraque.

Bob Woodward, no livro Fear, relata que o ex-secretário de Estado Rex Tillerson (ex-chefe da Exxon-Mobil) divergia e considerava que exigir pagamento pelas bases no que Trump chamava de “protetorados” seria converter o exército em uma força mercenária.

Guaidó e Maduro ainda disputam o poder (Foto: AFP)

Espólio

Em defesa de Trump, parece que a retração militar não diz respeito apenas a um cálculo econômico, mas à intuição de que a intervenção militar provoca mortes em massa e às vezes caos duradouro (Iraque, Síria e Líbia são os casos mais recentes) que inevitavelmente produz ressentimento e até ódio contra os EUA.

Em dezembro de 2015, Trump defendeu Vladimir Putin afirmando “que nosso país também faz muita matança… Há muita estupidez no mundo agora, muita matança, muita estupidez”.

Em fevereiro de 2017, presidente, Trump reagiu à crítica de Bill O’ Reilly de que “ele (Putin) é um assassino”, afirmando que “há muitos assassinos. Você pensa que nosso país é tão inocente assim?”

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Ainda que o cálculo de custo-benefício de Trump possa ir além de critérios econômicos, o balanço entre gastos e receitas monetárias parece ser mais importante quando se trata de riqueza mineral e, sobretudo, petróleo.

Woodward relata que Trump insistia para que seus ministros planejassem a tomada da riqueza mineral afegã (terras raras) para pagar o custo da guerra: “Por que não estamos lá tomando isso?” Não se convenceu quando Tillerson argumentou que a espoliação mineral seria uma dádiva para extremistas antiamericanos no mundo inteiro.

Em janeiro de 2013, Trump tweetou: “Ainda não posso acreditar que saímos do Iraque sem o petróleo”.

Em debate com Hillary Clinton em setembro de 2016, propôs voltar ao século XIX: “O costume era que ao vencedor pertenciam os espólios. Agora não há mais vencedor… Mas eu sempre disse: tome o petróleo”.

Já presidente, teria insistido duas vezes com o presidente iraquiano para ceder mais petróleo como reparação pelos custos da guerra. O ex-Conselheiro de Segurança Nacional H.R. McMaster o teria repreendido na segunda vez: “É ruim para a reputação americana, vai assustar os aliados… e nos faz parecer como criminosos e ladrões”.

Venezuela

Em outra ocasião, o ex-secretário de Defesa James Mattis teria complementado que a perda de reputação resultaria da violação de normas internacionais. Não seria o melhor exemplo global.

Tillerson, McMaster e Mattis foram substituídos por ministros mais militaristas. Há duas semanas, o vice-presidente Mike Pence afirmou que Trump “não é um fã” de intervenções externas, exceto “neste hemisfério” (o chamado “quintal”).

O novo Conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, afirmou recentemente que “estamos em conversação com as grandes companhias (petrolíferas) americanas… a Venezuela é um dos três países que eu chamei de Troika da Tirania (além de Nicarágua e Cuba). Faria uma grande diferença para os Estados Unidos economicamente se pudéssemos fazer as corporações de petróleo americanas realmente produzirem e investirem nas capacitações petrolíferas da Venezuela”.

Não se pode discordar dos antigos responsáveis pela política externa no governo Trump que buscar espólios de uma guerra (ou de um golpe) pode manchar ainda mais a reputação (soft power) global dos EUA como promotores (seletivos) da democracia, dos direitos humanos e de um sistema de regras multilaterais.

Nem discordar de Thomas Wright, diretor no Brookings Institution, segundo quem Trump quer levar a política externa dos EUA de volta ao século XIX. No limite, o legado de Trump pode ser um mundo dividido em esferas de influência entre grandes potências adeptas da Realpolitik.

Isto seria o fim do século americano imaginado para o mundo por Woodrow Wilson durante a Primeira Guerra Mundial e ensaiado por Franklin Delano Roosevelt na Segunda Guerra. Na Venezuela, hoje, há mais em jogo do que a estabilidade regional e o destino do sofrido povo venezuelano.

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