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Na Venezuela, a solidariedade é medida em barris de petróleo

O acesso fácil ao petróleo move os “humanistas” pró-Guaidó e os “legalistas” que apoiam Maduro

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Pode-se dizer tudo sobre a situação venezuelana, menos que as movimentações em curso a unir várias facções da oposição local, a Casa Branca, governos como os do Brasil, Argentina, Chile, Polônia e Hungria, organismos como a OEA e o Grupo de Lima e a maior parte da mídia global não sejam a preparação de um golpe de Estado.

As justificativas para o público em geral são tão verdadeiras quanto uma nota de 3 dólares. Todos teriam sido tomados de súbito espírito humanitário e democrático e buscariam “libertar” o povo venezuelano de uma ditadura opressiva que mata a população de fome.

O governo de Nicolás Maduro de fato está longe de ser exemplar em termos de respeito às garantias democráticas ou de gestão econômica virtuosa. Mas não é melhor nem pior do que inúmeras administrações pelo mundo que continuam a cometer barbaridades sem pressão, boicote ou agressões externas.

O impasse continua na Venezuela pelo fato aparente de os Estados Unidos ainda não terem encontrado a fórmula de uma intervenção externa. O Grande Irmão do Norte nunca se envolveu diretamente nos golpes que patrocinou na América do Sul, seja com tropas, seja com ataques aéreos e navais. Agiu assim na América Central, nos Balcãs e no Oriente Médio, mas não por aqui.

Ao Sul do Equador sempre preferiu terceirizar a ação para militares e empresários amigos, como ocorreu no Brasil, no Chile e na Argentina nos anos 60 e 70 do século passado. Financiou armamentos, campanhas midiáticas, igrejas e toda a sorte de iniciativas de massa. Eram formas de se evitar desgastes abertos ou questionamentos sobre a legitimidade dos ataques. Continuará assim?

Os EUA e seus aliados, o Brasil entre eles, foram tomados por um súbito espírito democrático para libertar o povo venezuelano da opressão

Embora a ascensão do governo Bolsonaro tenha sido decisiva para mudar o ânimo continental – o PIB brasileiro representa quase 70% do total da região ‒, não há decisão clara de Brasília em engrossar uma possível coalizão militar além fronteiras.

Enquanto não chegam a um acordo com os eventuais aliados, os Estados Unidos apertam o garrote econômico sobre Caracas. Desde o início de 2015, ainda sob Barack Obama, Washington começou a impor uma série de sanções que agravaram a crise interna. A partir daí os embargos progrediram para proibições de cidadãos estadunidenses realizarem transações com o país.

Colômbia e Arábia Saudita

No fim de janeiro, o Departamento de Estado e o Departamento do Tesouro cancelaram as guias de compra de petróleo da estatal PDVSA e passaram o controle da CITGO, filial da empresa estabelecida no Texas, ao que denominam “governo de transição”, liderado pelo deputado Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional.

Enquanto isso, o vizinho de 32 milhões de habitantes enfrenta uma pesada crise econômica há ao menos cinco anos e assiste a uma conflagração doméstica internacionalizar-se de forma acelerada. Pelos quatro cantos do mundo comenta-se a falta de produtos nos supermercados, as manobras do governo Maduro – chamado de “ditador” pela mídia global ‒, e relata-se a odisseia de legiões de pobres que deixam o país todos os dias.

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Guaidó, ao mesmo tempo, é apresentado como o líder talhado para assumir o poder, ao menos em uma fase de transição. É jovem, tem uma família maravilhosa e só deseja libertar o povo venezuelano.

Maduro e Guaidó, cada um em seu universo particular (Fotos: AFP)

A Venezuela assiste ao acirramento dos conflitos internos com repercussões externas por uma razão nada desprezível: é dona das maiores reservas planetárias de petróleo, algo em torno de 300 bilhões de barris, segundo a Organização dos Países Produtores de Petróleo.

Em seus melhores dias, a indústria petroleira local extraía cerca de 3 milhões de barris por dia. A queda de preço do produto, o sucateamento da PDVSA e a falta de planejamento fizeram a produção cair a quase um terço. Mesmo assim, façamos as contas: se estiver com seus poços a todo vapor, como nos bons tempos, há óleo suficiente para abastecer o mercado mundial ao longo de 274 anos, mantidas as condições atuais.

A preocupação maior da coalizão montada por Washington é, portanto, pela democracia e pela qualidade de vida da população de um país riquíssimo em petróleo.

A crise humanitária é realmente grave, assim como a escalada autoritária do governo Maduro, mas aqui também é preciso contextualizar o problema. Embora não exista uma estatística oficial, calcula-se que 3 milhões de venezuelanos, cerca de 10% da população, deixaram o país por falta de condições de sobrevivência.

É impressionante, mas não muito diferente do drama de outras nações latino-americanas. Em 2017 havia cerca de 2,7 milhões de colombianos no exterior, expulsos pela guerra interna entre o governo e as FARC e outros grupos armados. Em nove anos, 10,7 milhões de habitantes de Honduras, Guatemala e El Salvador cruzaram a fronteira americana em busca de uma vida melhor. O levantamento é do Pew Research Center, com base em números da Agência de Controle de Fronteiras dos Estados Unidos.

No caso da escalada autoritária, o que se dizer da Arábia Saudita, aliada de primeira hora de Washington? Nem sequer chega a ser um país e está mais para uma vasta propriedade familiar, dirigida a ferro e sangue pela monarquia local. O Egito vive sob uma ditadura militar. Situação semelhante é observada na Líbia, no Tibete, no Iêmen e em vários outros cantos.

Por que Donald Trump não aciona seus aliados para deflagrar um cerco econômico a essas regiões? Por que não utiliza sua influência na União Europeia para isolar tais governos? Simples: trata-se, nestes casos, de ditaduras amigas, como se dizia nos anos 1960.

Chavistas e antichavistas sucumbiram à maldição (AP Photo/Natacha Pisarenko)

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Muitos talvez se perguntem: se a Venezuela é dona das maiores reservas conhecidas de petróleo, por que enfrenta uma crise tão profunda, que ceifou quase metade de seu PIB?

Combustível da economia mundial e mercadoria de mil e uma utilidades, o petróleo garante prosperidade em tempos de preços elevados no mercado mundial e é sua desgraça quando as cotações desabam, como aconteceu entre 2014 e 2016. Nesse período, a economia local foi literalmente ao fundo do poço.

Sem outros produtos de exportação, o chamado “ouro negro” responde por 97% do comércio exterior do país. A própria exuberância em épocas de preços altos inibe a instalação de indústrias e outras iniciativas produtivas capazes de diversificar a economia. Nenhum governo venezuelano, chavista ou não, conseguiu escapar da maldição.

Em julho de 2007, o barril alcançou sua maior marca histórica, 148 dólares. Sete anos depois, os preços desabaram para 28 dólares o barril. A Venezuela quebrou, a Rússia entrou em recessão e todos os países dependentes do óleo enfrentaram fortes turbulências.

Some-se à tragédia a total inabilidade e o voluntarismo de Maduro para lidar com adversidades, construir alianças e conduzir a economia sem jogos de cena. Para manter-se no poder, o sucessor de Hugo Chávez buscou isolar a oposição pró-Estados Unidos por meio de uma Assembleia Constituinte que, um ano e meio depois de instalada, não preparou uma nova Constituição. E fracassou na tentativa de reestabelecer o crescimento econômico. Sem falar na prisão de adversários políticos em processos de legalidade contestável.

O interesse de Pequim

É pouco provável, no entanto, que a oposição resolva o problema, caso chegue ao poder. As oscilações dos preços internacionais do petróleo situam-se em esfera muito acima das competências de governos nacionais de países periféricos.

O apoio de Pequim a Maduro não é gratuito. Em 2014, os chineses compraram quase à vista um estoque de petróleo a ser entregue pelos próximos 35 anos

Além disso, a pressão sobre Maduro tende a elevar o conflito interno a um enfrentamento entre Estados Unidos, China e Rússia, como acontece na Síria, com consequências devastadoras para a população local. O apoio de Pequim ao governo chavista não é gratuito.

A partir de 2014, os chineses passaram a comprar quase à vista um estoque de petróleo a ser entregue pelos próximos 35 anos. Pagaram adiantado por um produto que ainda se encontra no subsolo. O receio é que um governo pró-Washington rompa o acordo e imponha um prejuízo de dezenas de bilhões de dólares a Pequim.

Trump lançará tropas dos EUA ou usará prepostos? (Foto: Doug Mills / POOL / AFP)

A Rússia, por sua vez, tem na Venezuela um mercado exclusivo para sua eficiente indústria de armamentos. Os russos vendem a Maduro aviões, blindados e armamento leve, mercado tradicionalmente suprido e cobiçado pelos Estados Unidos.

O isolamento de Maduro está em progressão, mas ele ainda não se tornou um pária internacional. E o chavismo, embora desgastado, continua a angariar significativo apoio popular, situação que pode mudar diante do aumento das sanções externas e do inevitável aprofundamento da crise econômica.

Guaidó, o presidente “paralelo”, era quase desconhecido da maioria da população até novembro passado. Ex-líder estudantil de protestos realizados em 2007, assumiu a presidência da Assembleia Nacional e foi projetado internacionalmente como a esperança do país, apesar de não ter liderança sobre quase nada.

O desfecho dessa tensão pode acontecer nas próximas semanas. Se o Brasil cometer a loucura de entrar em uma briga que não é sua e seguir a colocar lenha na fogueira, dias terríveis nos aguardam.

A única saída seria uma rodada de negociações entre governo e oposição, conforme proposto pelo México e Uruguai. Guaidó e Trump recusam a oferta. Apostam em sangue, suor e balas.

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